porta fora
O homem ficou abismado quando leu, ainda que na diagonal, os papeis que a mulher lhe estendeu em silêncio. Depois, ela quis sair porta fora dizendo adeus sem dar qualquer explicação, e o paladar na boca dele azedou. Vociferou o homem as mais feias palavras, arremessando o punho contra os objectos frágeis, os estilhaços voaram contra a lisura das paredes e tudo pareceu uma tempestade de vento uivando enfurecido e nuvens troando. À mulher não lhe incomodaram os seus vitupérios, nem a porta escancarada do apartamento para o átrio de entrada onde morreram as duas peças de porcelana que adornavam o móvel do corredor. Nem sequer conseguiu ele vê-la na rua depois, entre as pessoas e os automóveis à primeira hora de ponta do dia, as lojas abrindo, e o guincho matinal das gaivotas procurando pedaços de alimento.
Era bastante cedo para uma tempestade conjugal. Bastante cedo para quem decide sair da vida de outra pessoa mostrando uns papeis e meia dúzia de palavras
- Já não volto hoje, Carlos; adeus
e adeus coisa nenhuma, como podia ele consentir que isso pudesse acontecer assim!? Agarrou-lhe os braços e, numa luta muda onde o homem perdia as forças porque o corpo como um cavalo ofegante do coração prestes a esburacar o peito, a mulher conseguiu gatinhar pelo corredor, transpondo a porta. Ele ainda foi a tempo, também de gatas, de lhe apanhar um sapato entre um foda-se de frustração, acabando por se deixar cair completamente no soalho, de bruços, cabeça tremendo de derrotado e ainda olhando para ela como que suplicando quando a mulher voltou para resgatar o sapato, alinhando o vestido muito liso a exibir a gravidez do seu ventre
- Porquê, caralho? Dizes-me só porquê?
e a mulher nada, mais nenhuma palavra. Saiu a correr escadas abaixo, receando que a espera do elevador desse tempo ao homem para recuperar forças e voltar a assaltá-la. Ficou ecoando aquele seco adeus na cabeça dele enquanto vociferava pela boca palavrões espumosos de raiva. E o objecto mais frágil que encontrasse arremessava-o contra as paredes e o chão.
Não soube a mulher que a porta ficou escancarada durante todo o dia. Com poucas forças para continuar violento e destrutivo, o homem afundou-se no sofá depois de ter ainda procurado em vão pela janela o vulto dela. Sentiu a porta do apartamento da frente abrir, alguém arrastando com o pé alguns estilhaços de porcelana, e pontos de interrogação a assomar junto à porta escancarada. Ouviu um murmúrio que logo se calou assim que vociferou para quem estivesse ali
- Que é que foi, caralho?
de voz esganiçada e o corpo tremendo. A porta do apartamento em frente voltou a fechar-se. Passaram quatro horas e o homem sentado no sofá. Pela hora do almoço o telefone tocou e ele sentado no sofá. Mais cinco horas e apenas ele e o sofá. A luz começara a inclinar-se e só então reparou depois que o corpo deixara de tremer, e na urina que encharcara o sofá.
O elevador soluçou naquele momento. Dele saíram passos esmagando ainda mais os estilhaços ao abandono, e mais pontos de interrogação se voltaram para o cenário de destruição da entrada. A porta do apartamento da frente abriu e ele conseguiu ouvir
- O que é aquilo no chão, mamã?
e murmúrios para dentro, com o ferrolho dando uma e outra volta, após a batida seca da porta.
Levantou-se do sofá a olhar para o nada. Foi tomar um duche, vestiu qualquer coisa e saiu de casa. A porta continuou escancarada, com os pertences da mulher ainda lá dentro. Como desejou o homem que alguém tivesse entrado, pela madrugada, acabando por fazer desaparecer o resto que escapou à sua violência.
Quando regressou, ainda antes do sol se erguer, e muito bebido, os estilhaços do átrio tinham sido varridos. A porta continuava escancarada e ninguém tinha violado o espaço. A desordem estava no sítio, mais o que escapou à sua fúria, objectos e móveis alinhados como a mulher os tinha deixado. Regressou ao sofá como ombro confidente da sua amargura. Da urina já seca, juntou-se mais urina depois de muito uísque.
A porta continuou aberta toda a manhã, como boca desesperada. Eram duas horas da tarde quando, sacudido violentamente pela ressaca de tudo, conspurcado de suor e urina, voltou a pegar naqueles papeis e os releu. Então, resignado, com os olhos espetados de raiva, aceitou que a paternidade da criança que a mulher trazia no ventre há seis meses em nada tinha que ver com ele, mas, amarrotando os papeis com os punhos, começou a murmurar uma ladainha jurando vingança de morte.
E, na sua miséria total de tudo, voltou a sair, muito determinado, porta fora.
_
(foto de autor desconhecido)
Comentários
Enviar um comentário