o que um violoncelo diz quando chora
Isto é a tentar ser o que um violoncelo diz quando chora, e há lágrimas como as palavras que puxam outras palavras, ou, por exemplo: há alguém, no café da aldeia, que manda uma boca querendo atingir qualquer um como quem cuspe para o ar e há sempre outro alguém que percebe e defende e mais argumento faz, e depois as bocas vão-se respondendo entre si urdindo um novelo escuro, com o álcool a incitar, e fica o café com meia aldeia em resmungos e impropérios, e o ar, se mal chegava para o aroma arrotado das sobras de cerveja sob o balcão que ninguém limpa, quanto mais para tanto cuspe a ver que cabeça há-de apontar para ser o próximo a falar;
e, portanto, cada cabeça sua sentença, e eu sem sentenciar a minha que em nada disto se quis ver envolvida, estou sossegado com os auriculares a perceber como chora um violoncelo que diz alguma coisa para surgir de fininho o violino a dizer que chora ainda mais, que é quase, quase, como quando entra uma mulher, e é certo que esta mulher entrou e viu o seu homem humilhado entre meia dúzia de brandis sem se defender, apenas encostado àquela quase inundação de cerveja que cada copo verte, dando aos ombros, e por isso se encarniça a mulher ao perceber os cuspes nada alheios do novelo, embora, e verdade seja dita, alguma coisa estava já em vias de acalmar porque os olhos sobre o decote generoso que traz, apesar da chuva, assim como as pernas nuas sem meias que lhes defenda a pele morena da investida da bátega, por isso ela entrou assim, pingando das pernas que a saia curta travada não chega para abrigar uma chuva batida a vento, inclinada como os troncos semi-despidos das árvores, e ao entender que o cuspe no ar era por causa do seu homem, ficou numa atitude respingona;
o violoncelo não se cansa, leva o acorde para fazer sofrer as outras cordas, as mais frágeis, as mais finas, ao ponto de qualquer uma rebentar com um impropério quando alguém diz, deixe lá isso já passou, porque agora ficaram os olhos postos na encharcada mulher de peito avantajado e pernas roliças que entrou para simplesmente tomar um café e percebeu que o novelo de cuspe se estava desfazendo sobre o seu homem de olhar de carneiro mal morto, íris vidradas pelo bota mais um que pede ao que nunca se lembra de limpar o balcão inundado pelos arrotos das cervejas em suspensão, enquanto o violino percebe o infinito acorde do violoncelo a insistir, e há uma corda que parte, isto é, há um denso escarro em vez de cuspe que lhe cai sobre a cabeça, coitada, que já vinha açoitada pela chuva, vinha para um café a saber se o homem se demorava ou por quantas doses de brandy se fazia apregoar mas tão calado, coitado também;
eu acendo o meu último cigarro, que chatice o maço no fim, não vi palavras como lágrimas a sair de mim, na comoção das cordas que choram e teimam, o violoncelo chato e taciturno a insistir por gritos e por cabelos que se puxem, não fosse a mulher a única com cabelos que se puxassem, afinal, isto é um bando de velhos carecas, diz ela, com o peito mais inchado quase a rebentar as costuras por ver o seu carneiro mal morto, de olhos vidrados como os copos, sem dizer palavra alguma para defender a honra;
os outros cuspes suspenderam, e foram caindo aos poucos, agora é que o balcão é o lamaçal, e ela diz, em andamento sofrido de ponto de interrogação como cruz de calvário, por que te deixas ficar assim homem, o outro insiste no deixe lá isso já passou, mas ela vocifera, e mesmo antes que o violoncelo nos meus auriculares se desse por vencido, dando aos ombros, tal carneiro mal morto encostado a um lamaçal sujando a manga do casaco com monco, a fina corda do violino respinga, como espingarda que ninguém estaria à espera que fizesse estrondo, e exclamou puta que vos pariu a todos, tentando arrastar o seu homem para fora, onde já estava chovendo outra vez, mas desta vez a ser bendita a chuva para fazer acordar o carneiro mal morto antes que se finasse para sempre;
e eu tentei ser o que um violoncelo diz quando chora, procurando a comoção como as palavras para escrever como quem chora, e vi chegada a minha vez de abalar, mas não sem antes poder ouvir, pela porta aberta do café, vê lá se não foste tu que me pariste ó grande puta até te vens a mostrar para aqui, e, por cima do ombro, através da vidraça enorme, ainda vi a sombra do outro lado do balcão tentando limpar o lamaçal mas desistindo, que quem vier de manhã que dissipe o arroto da cerveja com solução de lixívia, sabão e água, sem dizer palavra, ou desde que não acorde as cordas do meu, enfim, já vou subindo para onde tenho de ir, do meu violoncelo cujo cigarro não fumou, apagou-se entre os pingos da chuva caídos nos meus lábios, que, diz-me ele, não há paciência de gato para fugir entre aqueles, ou seja, os pingos da chuva ou do cuspe atirado ao ar a ver quem atingia;
porque, num café de aldeia, o sangue só com álcool é apenas dormência, há que dar ambiente, se é sábado à noite, essa circunstância que promete um domingo repleto de comentários feitos pelas prometidas viúvas dos que cuspiram e depois assistiram ao fogo preso no final, essas mulherzinhas curvadas ao pequeno-almoço após a missa, cochichando e escarnecendo: olha o escarcéu que aquela puta, a do que se embebeda, fez ontem… pois, se o homem se embebeda, é porque ela lhe põe os cornos.
_
(foto de autor desconhecido)
Comentários
Enviar um comentário