mudar de vida
Um dia quis saber
- Pai, gostas do que fazes neste trabalho?
e a tua resposta tão afirmativa
- Não
sem deixar margem para qualquer dúvida sobre não gostares do que fazias. Deixaste-me boquiaberto, a resvalar para a perplexidade. Tão confuso para o miúdo que eu era então, tendo consciência do quanto colocavas tudo de ti naquele trabalho de fabricar um par de sapatos desde o minucioso desenho até o fechar na caixa para o cliente. E embevecia-me, precisamente, no princípio de tudo: o desenho, o moldar. Embevecido com essa arte até ao ponto de ter orgulho por seres meu pai. A fabricação, depois, pensava eu, era apenas o uso de técnicas que tinhas aprendido e que qualquer outro nessa arte de calçar os outros também o saberiam, mais ou menos. Embora, para mim, essoutros saberiam muito menos que tu. Teres-me dito de que não gostavas foi, portanto, também uma desilusão. Como seria possível? Então, explicaste
- Uma coisa é teres brio no trabalho que fazes e que as circunstâncias te levaram a optar por uma razão alimentar, porque precisas de ganhar dinheiro, porque tens filhos a sustentar. Outra coisa é gostares disso. Não, nunca gostei, arrancaram-me da minha infância porque era necessário pôr o pão na mesa. A tua avó não tinha rendimento certo, e naquela altura, enfim, as gentes humildes colocavam os filhos a trabalhar muito cedo, era assim aquela mentalidade. Mas eu não, nunca quis assim, aos meus nove anos fugia do trabalho para ir espreitando nas janelas da escola um professor que ensinava a ler e a fazer contas a outros que não tiveram a mesma sorte que eu. E lá fui apanhando. Quando encontrava jornais velhos que deitavam ao lixo, fui aplicando o que rudemente conseguia perceber. A verdade é que aprendi a ler praticamente só, a juntar as letras do jornal, perguntava por vezes que letra era aquela, e lá fui juntando tudo, como saber que dois com dois faz quatro
e eu sempre de boca aberta, os meus catorze anos a querer entender outras coisas
- Mas tive de me habituar a trabalhar, não penses que fazia gazeta, era só quando tinha tempo ou folga. O problema é que eu não gostava de estar a mando de ninguém e assim que tive discernimento quis estabelecer-me por conta própria, muito novo. E entendi que era preciso ter brio, já que era a arte que eu sabia mais. Para entregar algo bem feito, percebes? Mas gostar, mesmo gostar, não. Nunca gostei
acrescentaste. O que me serviu de lição para toda a vida. Tanto que, quando me perguntam se gosto do que faço, também a minha resposta é não. Ainda que tenha conseguido
(talvez com o tal brio)
no meu trabalho fazer o que possivelmente mais gosto, a resposta é sempre não. Em outras conversas dizias, a mim e aos meus irmãos
- É importante que vocês estudem, para poderem ir mais além, não ficarem obrigados a quem vos coloque a mão no pescoço, para vos dominar, submeter. Porque quem tem o poder, faz e desfaz
e nisso tinhas toda a razão. Mas não sei se os tempos mudaram assim tanto, sabes? Há agora muita tecnologia, que tu nunca chegaste a conhecer, e embora possa toda essa tecnologia ter servido, em geral e em teoria, para um maior bem comum, o facto é que, apesar de estudos e de se tentar fugir a essa mão sobre o pescoço, teimam os que querem dominar, herdeiros ou não desse poder que conheceste e lutaste contra, continuando a fazer e a desfazer de quem trabalha.
Hoje não há proletariado, dizem, somos todos colaboradores. Mesmo o que executam tarefas de acordo com as suas habilitações académicas, mesmo os que não estão numa linha de montagem
olha, por exemplo, a fabricar sapatos
mesmo os que ainda assumem cargos de alguma decisão, e profissões que eram chamadas de liberais, advogados e magistrados, médicos e enfermeiros, professores e auxiliares, jornalistas, ainda engenheiros e arquitectos, até mesmo artistas – a última fronteira de se fazer o que se gosta – todos estamos sujeitos a uma engrenagem, a uma empresa qualquer. Uma engrenagem medonha, pai, tu nunca a imaginarias assim…. E na qual acabei por ser uma simples peça. Por mais que me esforce, por mais brio e foco, estou e estão todos sujeitos a quem manda, somos meras peças.
Um dia quis saber
- Pai, o que mais gostarias de fazer?
e a tua resposta tão afirmativa
- Mudar de vida
quando eu já não era assim tão moço como aos catorze anos, entendi. E mais entende agora este teu filho que já vai além dos cinquenta, agastado e saturado por tanta gente tentando colocar as mãos no meu pescoço, que só posso repetir, nunca resignado, que também eu quero, e preciso, cada vez mais, de mudar de vida.
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