imagem depois de ti
A seguir caminho no intermédio da luz taciturna da tarde chuvosa e a noite vindo a descer vagarosa sobre os telhados adiantando a hora do crepúsculo. Abri o cigarro no hálito frio e a tarde encolheu-se fugidia. Soletro a calçada, pedras em granito tão velho, com destino a ti.
Volvidos foram tantos anos, Manuela, que regressar assemelha-se ao aroma de uma velha reserva de vinho bebida em balões que nos enchem as mãos. Tento imaginar se o tempo te foi cruel, cavando rugas sobre o teu rosto, pregueando a pele no pescoço, nas axilas… Se te deu sofrimento de enegrecer a alma, ou caducando a maciez que os teus olhos continham.
(abano a cabeça numa flexão para me desvanecer de tais pensamentos, a cidade pulsa, vibra, vive…)
Se o tempo te deu em esgotada da paciência de filhos, viúva do amargo da rotina.
(resplandece a cidade: há tantos anos que aqui não vinha, a verificar a harmonia das gaivotas, os prédios grisalhos sob o céu inconstante de chuva e neblinas, o humor acre das vielas e dos becos guardados no mofo das traseiras)
Sinto que ir a ti é como descer no passado com medo de cair no presente. Vou a pestanejar memórias nossas, de sobrolho arregaçado, memórias tão íntimas, flagrantes do que eu e tu somos (ou fomos) feitos. Por cada rosto que se cruza comigo na rua é um vulto pressagiador de ti, a acelerar-me o ritmo cardíaco, alterando a maré da minha saliva, a ansiedade dos dedos. Continuarás com o mesmo semblante de triunfo sobre tudo, o mesmo olhar curioso e atrevido, com o dom de me incendiar os sentidos?
Tudo isto, Manuela, são rastilhos de incertezas, pudor sobre a desfiguração, fragmentos do medo de nada ser como era. A teimar que o tempo não é senhor de fazer estragos, de deixar permanecer o que a memória não quer atraiçoar. E isto é tudo o que tenho quando chego ao prédio tombado na frontaria de uma velhice que não reconheço, tão despegado do futuro, como se nada tivesse havido antes para que pudesse estragar o presente de inesperadas fatalidades.
O hálito do varandim com o cheiro a detergente da roupa pendurada sob o plúmbeo do céu parece acertar nisso: não reconheço qualquer peça, o tempo veio aqui desmanchar memórias, que raiva. E por que não recolheste ainda a roupa, Manuela, se a noite entrou de supetão mesmo que a tarde ainda exija o consentimento do borburinho diurno, dos carros, dos rostos que passam, das lojas entranhadas de luz tosca?
É então que carrego no botão oxidado da campainha. Tento lembrar-me do teu rosto sem artifícios do tempo, como se nenhum relógio tivesse funcionado entre a última vez que nos vimos e esta agora que nada me diz particularmente, pelo menos quanto ao que veio depois disso. Qual será, ó receio meu!, a imagem depois de ti? O que te sobrou, o que sobrou de ti em mim e de mim em ti? Tudo o que não pude aproveitar e agarrar, perpetuar. O que de nós vamos enfim conseguir aproveitar, Manuela? Saberei reciclar em mim a imagem depois de ti?
A campainha soou rouca, abriu-se instantes depois a porta da rua. Subo, sem precipitações, também sem hesitar, porém. Serão apenas alguns degraus, que me lembre. Amparada ao corrimão gasto onde pela primeira vez soubemos beijar-nos, vens a acenar-me, entre a penumbra. Subo ainda mais, renitente
(reticente agora?)
e quando te abeiraste do meu abraço, cercando com as mãos o meu rosto, a indagar o que foi feito de mim, não esperava que te viessem lágrimas aos olhos
(nunca te vi lágrimas, Manuela, agora reparo que não te conheci as lágrimas)
e exclamasses num preconceito de cansaço:
- Meu deus, o que o tempo fez de ti!
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foto de Ando Fuchs
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