hora incerta
Acordaste com o confuso atordoamento de quem ainda parece estar a sonhar. Dir-se-ia, por hipótese, que lutaste para que acordasses, muito embora não fosse realmente esse o teu desejo. E não porque o sonho
(já todos sabemos que os sonhos de que mais nos lembramos são aqueles que acontecem momentos antes de despertar)
te estivesse a proporcionar paz, prazer, ou sequer algum conforto. Bem pelo contrário, sentias a cabeça num turbilhão de ideias, a ténue sombra que separa o sonhado com a realidade, os olhos sôfregos
os teus olhos
(com todas as evidências)
sôfregos
(por isso a tendência para tocar em algo)
no limiar de um pranto e, ainda assim, a tua vontade de que fosse apenas um pesadelo, que nunca se concretizaria tão medonho desfecho. Depois, a tua frustração sobre um despertar que nada te acrescentou
(qual terá sido a razão?)
e tudo continuou igual quando do momento em que te rendeste ao sono. Desperta, pareceu-te continuares vivendo o pesadelo, pelo que, afinal, seria melhor se ainda estivesses dormindo. Tinhas adormecido agitada, rebentando em pranto, e agora, que outra coisa havias de fazer, acordada, senão voltar a esse pranto com que adormeceste?
Forçaste por engolir, mas, como a boca, sentiste a garganta muito seca, e um peso de tumulto sobre o teu peito. Sentiste o coração em arritmia, como que a deslocar-se do seu sítio natural, tal comboio sem freio em perigo de descarrilar.
Ninguém pôde saber, e tu só tarde demais é que te lembraste do que fizeste. Ainda tentaste chegar ao copo de água que ritualmente sempre ocupou a tua mesinha de cabeceira à hora de dormires. Foi nesse momento, envolvida no escuro, nesse tão frio escuro, percebendo a ausência do copo, que te surgiu a confusa memória – como que uma condenação – enquanto arquejavas: o último gole que tiveste foi quase em seco, sobre uma miríade de comprimidos, engolidos todos entre lágrimas exasperadas, deixando tombar o copo no chão, praticamente cheio.
É certo que acordaste, e nesses breves instantes
(como se qualifica essa sombra entre sonhar e despertar, convencidos de que ainda estamos sonhando?)
sentiste que, entre o sufoco, a secura da garganta e o peso no peito, todo o teu corpo se agitou. Não conseguiste controlar esse tremor, foi como se o quarto tivesse arrefecido acentuadamente abaixo do limiar do que suportavas.
Imaginando que ainda sonhavas, de que nada do que fizeste foi real, abriste muito a boca como se quisesses engolir tudo em volta. O teu coração, como aquele comboio sem freio, acabou por descarrilar. E, apesar de continuadamente a tua mão teimar no encalce do copo de água que não estava lá, cedeste às trevas que te envolveram, convencida de um sono ainda em dívida.
Porém, a imagem brilhante do relógio do despertador chegou-te pelo canto do olho e foi quando tomaste consciência
(qual consciência?)
de que o tempo decorrido entre adormeceres e teres despertado afinal tinha sido de pouco mais de meia-hora. Não tiveste nem noite nem madrugada. Foi tudo há momentos. E arquejando cada vez mais, sentiste arrependimento.
Derrotada, deixaste então descansar os músculos que tremiam, tentando convenceres-te de que tudo ainda seria aquele pesadelo. E tentaste – sabemos lá o quanto terás tentado – ignorar memória e consciência, e dormir o que te faltava, embora com os olhos bem abertos, e o teu peito aliviando-se daquele peso, com a boca muito aberta para o escuro, expirando para sempre o ar que continhas sob pressão.
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foto de Andrea Kiss
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