exercício sobre o romeiro


Vou deixando peugadas por onde passo com a certeza de que a terra e os ventos rasteiros as desfaçam, porque não sou de cá, sou parte de nada, de coisa nenhuma que vistes, e os relógios surgem incertos para se concretizarem onde menos os espero, a badalar, a marcar o ritmo cardíaco do cão velho que late na distância ensimesmado com as sombras que vê, no momento em que se faz alvorada e a torre sineira badala, badala, e badala, badala, mas, na verdade, foi alvorada já há algum tempo, eram só os meus olhos que acordaram mais tarde ouvindo os sinos badalando, a lembrar alguém que puxa um cordel languidamente sem saber bem por que razão o faz, apenas executa um movimento ensinado, e a ladainha começa antes do inverno se instalar, fazendo noite no recanto escuro de uma qualquer esquina com as viúvas ensimesmadas com os latidos do cão velho acreditando que ouvem as contas do rosário sem imaginarem escutar outra coisa senão a torre sineira que as chama e as guia pelo caminho, as suas peugadas efémeras sobre os charcos da rua entre as folhas amarelecidas, o tasco já aberto para o jejum inicial do bagaço e nenhum copo na minha cabeceira porque nenhuma mesinha de apoio ou cabeceira, sequer cama a quem entre lençóis chama de cama, que a minha é apenas uma enxerga no mato entre arbustos altos e o tojo verde, portanto, sequer água, que isso é para meninos de carne muito tenra e as minhas, rijas de tantos horizontes, um bagaço certamente cairia bem, a fungar certezas na distância que ainda me falta tomar, romeiro que sou, a ver as enxadas paradas junto à loja que é tasca, percebendo a lamúria dos jornaleiros, e eles lamentam como quem estende as mãos à misericórdia clamando que basta do calvário de andar luta labuta horas sem fim de sol a domingo, e haja finalmente dia santo em que correr para a igreja signifique fugir entre os pingos da chuva abatendo a última colheita, gotas que tão bem caem como as contas do rosário e sobre mim, sobre as minhas vestes de romeiro porque a coragem foi muita para vir só de passagem e vou deixando peugadas que o vento sopra ao pé da terra desfazendo o que disse, onde fiz passo, ora lento ora estugado, dos meus pés esquecidos do cansaço, com o vento muito rasteiro pela parte que lhes toca, e então nada vistes no chão que em vossa terra pisei, prova para afirmardes que nunca me vistes, porque eu não sou de cá e ainda que vos perguntem quem fui, os badalos da torre sineira dirão o que a minha voz cala, assustada com o cão velho e já tão roufenho solfejando a cada badalo o cíclico perdão sobre quem és tu e para o qual a única resposta que cada um de vós terá é nada mais do que ninguém.


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(foto de autor desconhecido)

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