rimance do servo martim e sua senhora
Desesperado ficou Martim o servo
Por indiferença de sua senhora.
Combinados sinais deu o mancebo
Apaixonado a assinalar a hora
Da entrevista por ambos desejada.
Porém, não deu resposta a senhora.
Estaria distraída? Ou agastada…
Àquela condição pareceu indisposta.
O servo, temendo já vergastada
Por seu atrevimento, correu a fugir.
Palpitou muito o coração da amada
Que por estorvo de seu esposo vil
Dos sinais do servo se ver apartada
E por medo de falhar o seu ardil.
Disse então assim ao marido:
Senhor, afrontada estou e febril
Ide à vila por médico conhecido;
Respondeu: vá servo a léguas mil
Por curandeiro ou alguém sabido
Do que sentis - feminina tontaria!
Chamarei, volveu ela em alarido,
Chamarei por servo que me sirva!
E saiu do aposento com ar sofrido
E chamou a fiel aia, que já sabia
Do engodo, cúmplice do segredo:
A aia quem os vigiava e escondia.
Na intenção de encontrar o servo
Correram ambas à estrebaria.
Chegadas, acudiu o cocheiro velho:
Minha Senhora, honro presença
Nobre, a que serviço aqui veio
Vossa vontade fazer exigência?
Onde está Martim, o mancebo?
Atirou a aia, com indiferença.
Dele não sei, Vossas Senhorias,
Disse o velho com paciência.
Andará por travessas sombrias
Em tavernas, sem decência,
Bebendo por suas desditas…
É jovem, deixá-lo aprender…
Entreolharam-se pouco convictas
Aia e senhora daquele parecer
E volveram, a senhora já aflita
A aia tentando a ama convencer:
Sossegue, Senhora, não é nada
Senão o que eles sabem fazer:
Bebem, por ser vida desgraçada
Os homens não sabem viver…
Ah! Leanora pudesse ser alada
Eu e voaria até Martim achar!…
Replicou a senhora desalentada
Por amado servo se apartar.
Nisto, recolheram então à casa
Onde estava o senhor a jantar,
Mordendo carnes, bebendo vinho.
De nojo, e como fosse desmaiar
A senhora guinchou d’ escarninho
Estais Vós niss’ assim? Nada há
Pior qu’ homem perdido do tino
Por gula, pecador, filho do diabo!
Depois chorou, e soou um sino
A ditar um conto assim acabado.
Tal timbre Martim ouviu distinto
E, por amor, ficou desconsolado
De haver fugido. Jurou mais amor
Que, por ser maior, sai imaculado
Sabendo ser nobre e maior a dor
De quem ama, e nada é superado
Pela inquieta razão, tentando supor
O que é pelo que não é, e saiu
Martim do leito, que maior torpor
Lhe deu qu’ o descanso quis; fugiu
Por maior medo ao que viesse pior
Qu’ alguma vez a alma o sucumbiu.
Errado estava: à senhora amada
Não a socorre o credo, discerniu
Martim choroso. Foi d’atalaia
Ainda temendo, e assim subiu,
Sob a luz matutina desmaiada,
Por ruelas e travessas, veredas
Que o levavam a quem amava
E onde servia; um servo apenas
Que aquela senhora adorava.
Por ela morria, como nos temas
Das histórias d’amor que ouvia.
Não havia pregado olho a dama
Ânsia sofria por qualquer notícia
Do seu amado servo, e clamava,
Como delirando, por sua sevícia:
Deus meu, que me morra corpo
Que me destes e fui imerecida;
De minh’alma não tirais o sopro
Sem ter ela a razão tolhida,
Mais poupai Martim, sem cobro,
Deste pecado que é só meu!
A aia acudiu, pediu ainda o dobro
Que afligia à sua Senhora, e deu,
Por expiação, o seu próprio corpo
A salvar aquel’ amor que conheceu
Não achando culpa aos amantes:
Senhor, por Vosso Filho que morreu
Na cruz por nós todos, colhei antes
Carne e alma minhas, o que sou eu!
Dai-me suplícios a todos os instantes
Mas poupai minha Senhora e amado
Seu! Deus deve ter ouvido instantes
Destes delírios; chamou um diabo
Para ter certezas de tais levantes.
Veio o Senhor no demo encarnado
Entender por que assim choravam
Esposa sua e aia, de rosto mui irado:
O que estais vós em gritos clamando
A Deus? Não vos bastou o descanso
Que me tirastes, inda eu jantando?
Qu’ é iss’ agora? Quereis castigo?
A aia saiu aflita abandonando
Os senhores, que casal discutindo
Por desamor e muito desmando
É caldeira sob o fogo ebulindo.
Saiu aia e surgiu Martim, mui sério
Questionando a medida do perigo
Com que estava a senhora sob fero
Amo que gritava. Severo castigo!,
Soluçou a ama, Daqui já só espero
Tormentas, aflições, só masmorra
Para a senhora, nem por um credo
Se salvará, nosso amo não a adora,
Bem o sabes, e espera por ti ferro
Igual, se a ela a acometer má hora
De se confessar que contigo o trai!
Martim assim ouviu a aia chorosa.
Fez-lhe medo, lamentou com um ai
A má sina do amor, que transtorna
E faz horrores a quem nele cai.
Do aposento saíam súplicas, gritos
Da Senhora maltratada. Martim foi
Por toda a força dos ombros fitos
Contra a porta do medo que o mói
Ainda; e fez dos membros hirtos
Martelos para qu’ arrombassem.
Do fero amo, se raios e coriscos
Fogos do inferno largassem
Nele, demónio puro, neros xistos
E lavas de vulcões soltassem
Nada pior o ódio que o dominava!
A que vens? – cuspiu. Largassem
Mãos dele de sua ama violada,
Martim esperava. Inda chispassem
Medonhos olhos do amo, sua amada
Era agora sua demanda. E disse:
Solta-a monstro, que já se acaba
O teu domínio, mãos em riste!
Martim tão bravo, que levantava
Espada antiga do chão e listo
Lhe dava bravura e bramia:
Se não a deixas, velho chiste
Desgraçado e ridículo (e ria),
Engoles a lâmina! Martim insiste
Em movimentos que distraía
Por ódio o amo desafiado.
Bruto, caiu como coura bainha
Sob o ferro por Martin segurado.
Furado no tronco, da barriga
Ao fundilho, proferiu desmaiado:
Maldito és tu, ó infiel servo,
Até no inferno és amaldiçoado!
E foi-se num suspiro. Incrédulo
De sua bravura, Martim desesperado
Foi ver a sua adorada, mas o céu
Já era a sua última morada
Por sucumbir a marido cruel
E sentir-se mulher nunca amada.
Martim saiu, chorando, increu,
Por tanta e temerosa desgraça!
Procurou a aia em seus aposentos
E caiu por chão, sem esperança
Para o que tinha de bons intentos.
A aia pendurada, rosto de criança
Morta em prantos por sustento:
Enforcada por amor ao amor
Do servo e sua querida Senhora.
Martim partiu, co’ a cruz da dor
Mais cruel. Foi por esse mundo fora
A chorar este tamanho horror
De ter amado Senhora sua dona.
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imagem: Tristão e Isolda, por August Spiess
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