o fim das sombras em cada esquina
Desceu a tarde de janeiro na casa em frente. E é tão parco o reflexo do sol sobre a parede dessa casa que, desde o início do inverno, este quarto desceu na penumbra, sem sequer luz indirecta receber, até e enquanto a estação fria persistir. Habito sem viver o rés-do-chão de um velho prédio, desses que outrora tinham um porteiro, com secretária e tudo, numa espécie de altar ao lado do hall de entrada que elevava
(como um deus é exagero)
o senhor que tinha as chaves de todas as portas e que toda a gente parecia venerar. Imagino eu, porque quando visitava a minha avó era assim
- Boa tarde, senhor Joaquim
e na saída
- Tenha uma boa noite descansada, senhor Joaquim
e o senhor Joaquim acenando apenas com uma vénia da cabeça, muito altivo, sem dizer palavra alguma. Neste prédio onde habito
(não que viva)
deve ter sido assim. Imagino eu. Como imaginei, quando para cá vim viver
(nessa altura, sim, talvez vivesse)
ter uma vida plena e feliz com quem me engravidou e imaginava que me engravidasse outras vezes para termos os filhos com que deus soubesse abençoar-nos. Tínhamos acabado de casar, numa cerimónia simples, o meu vestido branco que a minha mãe insistiu, com o ramo de flor de laranjeira que, enfim, quem é que se lembra lá disso, sequer o que tal significa nos dias de hoje, eu de vestido simples há trinta e tal anos e agora o que vejo é esbanjarem centenas de euros por uma coisa que se veste naquele dia e no seguinte vai a lavar e secar para ser arrumado, a estrear o baú das memórias. E nem falo sequer do copo d’água, se é que isso também existe hoje, eu fui à igreja
isto é
nós fomos à igreja, uma cerimónia simples, o padre tinha um funeral não sei onde e despachou aquilo em três tempos, deixando-nos mal o meu noivo me descobriu o véu e beijou-me a testa, embora não fosse essa a minha vontade, afinal, eu de branco, grinalda e ramo com flor de laranjeira
(foi em meados de outubro, o sol resistindo ao outono instalado, mas ainda fazia quente, o que há trinta e tal anos era ainda coisa espantosa, as velhas repetiam
- São Martinho antecipado
mas uma trovoada seca e um vento que levantou quando saímos da igreja, fustigados por bagos de arroz, acabou num enorme e prolongado aguaceiro, pelo que as velhas mudaram a agulha
- Casamento molhado, casamento abençoado)
e, portanto, foi a testa que ele me beijou e eu fiquei muito admirada, não era isso que esperava, afinal grávida de cinco meses e, mesmo assim, a minha mãe insistindo no vestido imaculado, na flor de laranjeira, que era o sonho dela, coitada
- Que culpa tenho eu que lhe tivesses aberto as pernas antes?!,
e hoje elas vão casar já vivendo com o noivo, boa parte até com filhos nascidos, e fazem tudo na mesma como se fossem virgens, quero dizer, não sei se de grinalda e ramo com flor de laranjeira, se é que sabem o que isso significa, mas lá vão nos vestidos brancos ao custo dos olhos da cara, e já nem falo do copo d’água, que isso
(mas tenho de falar)
enfim, no meu casamento foi arrumar a sala de jantar para uma dúzia de convidados, um bolo e salgados, espumante
- Este é do melhor, comprei-o em Badajoz
insistia o meu tio à medida que ia enchendo as taças, era o único irmão do meu pai, fez questão de arcar com as despesas do meu casamento já que a minha mãe, viúva
(o meu pai perdeu-se sem se achar com as tascas e com uma cirrose tinha feito uns três anos, se tanto)
a minha mãe, desamparada, não podia suportar tal despesa, o meu tio sempre nos acompanhou desde a morte do meu pai, pelo que insistiu que a sobrinha casaria sem faltar nada, tão querido o meu tio, tanto que acabou por ser meu padrasto, a minha mãe caiu na lábia dele e ainda bem, mas não casaram, ele foi entrando em casa como visita, a minha mãe sozinha, triste
- Já vais embora, Eduardo? É ainda tão cedo…
pelo que o meu tio acabou por fazer a última visita à minha mãe e nunca mais lá de casa saiu, acabando em meu tio e padrasto. Eu e o meu marido, perguntando quando seria a vez deles de também casar, mas o meu tio sempre insistindo que já eram ambos a caminho da velhice, para quê casar? Acabei por descobrir uns anos mais tarde que ele, afinal, era separado e com filhos, o que me surpreendeu por eu ter primos, sem que nunca os tivesse visto, ora, eu indignada, mas a minha mãe
- Deixa lá isso, rapariga
pelo que deixei de me indignar e de me intrigar.
O que queria dizer, onde já lá vai, é que a boda foi tudo lá em casa. Agora não é assim; alugam, quase com um ano de antecedência, uma quinta num desterro que ninguém conhece, só pelo GPS se dá pelo caminho. Tudo tão mais caro, tudo tão bem organizado para um dia, quando, no meu tempo, se fazia consoante o que era possível. Com tudo isto
(a tagarela que sou)
percebo que já se foi o sol parcamente reflectido na casa em frente, e fiquei nesta densa sombra que o inverno mandou para fique habituada. Habituada é força de expressão. É como dizer que estou neste rés-do-chão há trinta e tal anos. Habituada? Sim, eu posso habitá-lo, mas dizer que vivo nele não é bem verdade. Deus amaldiçoou-me
isto é
abençoou-me com um menino doente de meningite desde que respirou e acabou por sucumbir meses depois. A ideia de ter filhos logo nessa altura foi esvanecendo e, aos poucos
(se é que posso dizer «aos poucos» para menos de meia-dúzia de anos)
acabou arrumada no mesmo baú das memórias onde já repousava o vestido imaculado do casamento. Eu e ele
ele, o meu marido
deixamos, desde então, de preparar o futuro, no sentido de uma família. Ele tornou-se no dono do stand de automóveis onde era vendedor quando o conheci e onde lhe dei o corpo, e eu fui mantendo a casa impecável – nunca tive um emprego. A verdade é que, recuando nas memórias e no que aconteceu, deixamos de ser aqueles noivos com os sonhos da juventude.
Hoje, os jovens casam sem sonhos por aí além, preferem viver cada dia, e nisso até acho bem. Bem seria melhor que tivesse sido assim comigo e com o meu marido. Mas eu fui lamentando por tempo demasiado a perda que sofremos, tão focada nisso, meu deus, que o meu anjinho não deve ter tido paz suficiente para se juntar aos outros anjos de deus, ainda que tivesse rezado e rezado para que ele pudesse estar no céu. Porém, chorando tanto a sua falta, que descanso terei dado àquela alminha?
Foi um inferno em que vivi, e quis que ele
ele, o meu marido
também o vivesse, negando-lhe na maior parte das vezes a minha vontade de estar com ele ou, quando não o negava, estando com ele mas sempre pensando onde andaria o meu anjinho
- Onde está o nosso anjinho, Pedro?
Tantas vezes em que o meu marido sobre mim saciando as suas necessidades masculinas, e no final me perguntava se eu estava bem, e eu só dizia, voltando ao mesmo
- Onde está o nosso anjinho, Pedro?
sem nunca ter percebido que ele nem sequer pensava mais sobre o menino que ajudou a conceber, o bebé que eu pari e que nos meus braços partiu. Nunca percebi, nunca dei conta, sequer imaginei que a falta de resposta do meu marido tinha um motivo maior: há vinte anos que tem vivido
(estou certa de que ele de facto tem vivido)
entre uma espécie de inferno e paraíso. Num inferno por ter aguentado comigo por pena, a mãe viúva do seu filho, fervorosa crente de que se o seu anjo tivesse conquistado o céu, esquecendo de ser uma esposa. E num paraíso por ele ter encontrado outro ventre onde deixar a sua semente, embora escondendo de mim
(percebo hoje que sem nenhum esforço)
como se voltasse a ser noivo de alguém, talvez insistindo como o meu tio-padrasto que a idade já não é para casar, afastando a ideia de outra esposa. Apesar disso, ele pôde ver aqueloutro ventre crescer e parir, por três vezes, nos últimos vinte anos, os seus
(reconheço)
verdadeiros filhos. Filhos terrenos, nenhum anjo. Sei que devia sentir-lhe raiva, ressentimento, mas uma mãe que carrega a dor de ver partir um filho amolece para outras dores, e posso dizer que, afinal, até o compreendo, e sei que qualquer um teria feito como ele, pior ou melhor, procurar uma espécie de saída. Porque no inferno o forcei a entrar por cerca de dez anos. E aguentou outros mais dobrados. Até que acabou por tomar o caminho que sempre adiou por pena. Por ter pena de como eu ficasse, tão desamparada de tudo, e para sempre. Não estava enganado. Não o vi mais desde setembro.
Já desci os estores da janela, subi um pouquinho da sombra com a luz do abajur. Nesta casa onde habito
(não vivo, já não quero viver)
no rés-do-chão de um velho prédio para onde vim morar há mais de trinta anos com o Pedro. Sei que não sou quem fui. Sempre soube que nada me restaria desde que o meu filho partiu. Só não imaginava que, desde setembro passado, acabaria sozinha com os fantasmas desta casa onde habito há trinta e tal anos, mas sem viver
(já não quero viver, a sério, não quero mais viver)
neste rés-do-chão cujo chão há-de ser o túmulo onde este corpo, se decompondo, libertará a minha alma para eu possa procurar o meu anjinho e a ele juntar-me. Pois eu sei que ele me espera após o limbo de tanto tempo preso pelas minhas lágrimas.
Agora, que conto a não sei quem a minha sina
(alguém há-de ouvir, há sempre alguém a ouvir)
deixo-me levar pelo sono que aqueles comprimidos que engoli dão e que me garantem
imagino eu
que com eles será o fim do inverno e das suas sombras em cada esquina.
_
(foto de autor desconhecido)
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