a vossa vizinha

conto em quatro episódios

primeiro episódio



Foi a melhor forma que encontrei para conseguir criar os meus dois filhos – diferem quatro anos entre si, o mais velho já é quase médico, o e mais novo estuda engenharia. Hoje são dois jovens adultos, bem unidos. Eram tão diferentes um do outro!... Se o mais novo parecia nem querer saber de mim, sempre agarrado aos jogos no telemóvel e com medíocre aproveitamento na escola, já o irmão mais velho, foi sempre um rapazinho exemplar, mais atencioso: além de saber de todas as lides domésticas

- Não te preocupes com isso, mãe

tentava influenciar o mais novo da melhor maneira que sabia, e tinha um excelente aproveitamento escolar. É ruivo, sardento – julgo que sai ao pai. O outro não sei, tem algo meu, mas também não considero que tenha algo do pai… do pai dele. São, por minha infelicidade, filhos de pais diferentes.

Um dia, a Sara, amiga de longa data desde que nos conhecemos no hotel onde tantos anos fizemos limpeza:

- Com esse contrato precário que te deram, nada me admira que ainda tenhas de aturar clientes na caixa do supermercado…

disse-me, enquanto limpava o suor da testa com as costas da mão e espremia a esfregona. Olhei para ela

- Por que te lembraste disso agora?

Ela verificava as toalhas. Sem me responder directamente ou sequer olhar para mim, quando eu lhe franzia o sobrolho perante aquela afirmação – já que tínhamos trabalhado há mais de uma hora sem conversar –, atirou como que a desabafar:

- Pensamentos cá meus…

e eu pensando na minha situação na altura. De facto, passei por momentos difíceis, limpando e arrumando quartos de hotel manhã cedo até à hora do almoço, depois, a partir das quatro da tarde e até o supermercado fechar, o trabalho de caixeira. Não bastando, nos dois dias de folga rotativa, ainda fazia alguns biscates: lavar secar e passar roupa, vender rissóis para o talho da zona, dar uma mãozinha na padaria ao lado, porque os donos são gente amiga, sempre dispostos a ajudar.

- Diz lá, Sara! Então, que remédio tenho eu senão sair daqui para o supermercado?... Tenho dois filhos para sustentar…

Ela parou e fitou-me como se eu fosse muito ingénua:

- Ó mulher!... Tens de largar isso tudo, o supermercado, os rissóis, as roupas dos outros, a padaria…

- Como?!

Ela largou as toalhas e veio até mim, agarrando-me pelos ombros, dirigindo-nos ao espelho:

- Olha para ti.

A minha figura reflectida, cabelo apanhado, fardada.

- Está alguma coisa mal?

- Não é isso. Desabotoa a bata.

Ela sabia que, por ser verão, debaixo da farda apenas nos encontrávamos de roupa interior, pelo que eu não percebi quais eram as suas intenções.

- Sara, não estou para brincadeiras

e logo saí do espelho para continuar a esfregar o chão, meneando a cabeça. Mas ela insistiu, libertando-me as mãos e voltando-me de novo para o espelho do armário.

- Não, a sério! Vá, desabotoa a bata.

Ri com algum nervosismo, revirando os olhos para ela

- Sara, menos! Que diabo de brincadeira é essa? Até parece!… Estás bem? Vou agora despir-me para quê? Que vem a ser isto?!

Ela fitou-me, carregando o sobrolho a imaginar o que eu estava, de facto, a cismar

- Mas, estás parva?!

- Parva estás tu! Desabotoar a bata?! Não sabes bem que não tenho mais nada por baixo? Que é que queres?

- Ó Nossa Senhora… Mas achas que agora quero ver-te nua, quando já te vi antes, nos balneários? Não é nada disso, quero que observes bem, e depois digo-te. Desabotoa a porcaria da bata, porra!

Muito desconfiada, desapertei o cinto e alguns botões. Ela não estava com muita paciência para as minhas hesitações, pelo que, num gesto bruto com as mãos, abriu completamente a bata, descendo-a abaixo dos meus ombros. Um dos botões da farda saltou para o chão.

- És mesmo parva!

reclamei, procurando onde teria caído o botão. Ela colocou-se atrás de mim e disse:

- Olha para ti

e fez descer a bata aos meus pés. Olhei novamente a minha imagem no espelho, embora arreliada com aquele episódio. Antes que eu pudesse voltar a reclamar, ela continuou, decidida a descrever o que ambas víamos no reflexo:

- Ombros suaves, um pescoço alto, olhos profundos, lábios perfeitos, peito cheio… e tantos sinais…

- Sara, pára por favor, o que é que…?

ignorando o que eu dizia, continuou

- Coxas roliças, joelhos bonitos, esse volume dentro das cuecas… devias depilar-te aí, amiga…

Foi o quanto me bastou para num supetão apanhar a bata caída e voltar a vestir-me, insultando-a enquanto procurava, de gatas, pelo botão caído no chão. Sara ria-se e assim que me viu de rabo para o ar, acrescentou

- Ah e o teu cu! Tens cá uma peida…

Eu não estava a achar a mínima piada, embora ela continuasse rindo ou sorrindo. Apanhei o botão da bata que estava debaixo da cama do quarto, e ergui-me para lhe dar uma bofetada.

- Mas, Cátia, eu só queria…

balbuciou. Viu como eu estava furiosa.

- Cátia, ouve. Não é nada do que pensas… é que, com o corpo que tens! Menina, tivesse eu esse corpinho! Podes ganhar muito dinheiro!

Eu não estava a acreditar no que ouvia. Arranjei-me conforme pude e vociferei:

- Deves achar que eu agora dou para puta, é isso? Mas quê, sou da tua laia? Vai-te foder, Sara, tu deves ser mesmo maluca!

E saí porta fora do quarto, ainda gritando

- Arruma o resto dessa merda! Para mim chega, vou embora!

Ela não reagiu, apenas observava os meus gestos e ouvia os meus insultos. Assim que saí pela porta ainda a escutei lamentando: 

- Eu só queria ajudar-te, Cátia!

_

segundo episódio


Passaram uns dois anos depois daquela cena no hotel onde Sara e eu trabalhávamos juntas. Obviamente, despedi-me desse emprego e consegui, em pouco tempo, o mesmo trabalho num motel mais próximo e com melhor salário. Porque aquela abordagem enfureceu-me e, embora Sara tivesse insistido em falar comigo, telefonando ou enviando mensagens, eu estava decidida em não querer vê-la mais, sequer ouvi-la. Pelo que continuei com a minha vida de sempre, aquela vida de cansaço, sem muito tempo livre, sequer para os meus filhos. Só com muito esforço podia acompanhá-los.

Daniel, o mais velho, começava a preocupar-se com o futuro, imaginava-se médico, interessado que ficou por ciência e biologia. Já o irmão, Francisco, nada lhe importava e, mudando de escola, mudou o comportamento para pior: tantas vezes fui chamada à escola para saber que, invariavelmente, se envolvia em brigas com rapazes mais velhos do que ele. Boa parte das vezes eu não conseguia estar presente quando o director de turma queria reunir em privado comigo. Foi, portanto, e posso dizê-lo seguramente, a pior altura da minha vida, desde que sou mãe solteira, sem qualquer outro apoio que não fosse de amigos, ou apenas dos meus vizinhos.

Senti que me afundava. Não tinha qualquer tempo para pensar em mim. Quisesse apenas dar um passeio, ou sair com amigas à noite. Muito menos para namorar. Aliás, isso de namorar nunca foi uma preocupação… mas todos me diziam que eu era nova, que ainda podia contar com o amor e toda essa treta. O que me preocupava era manter as telhas e a educação dos meus filhos. Não estava com qualquer disposição para relacionamentos amorosos.

Acabei por deprimir. O que não compreendi na altura. Apenas queria fugir das sombras que ocupavam os meus pensamentos nas noites de insónia. Preocupavam-me essas insónias, pois tinha de dormir para poder acordar a horas de entrar ao trabalho e conseguir o resto do dia sem ficar tão cansada. Então, ora acabava por beber algo que me levasse ao sono, ora recorria a medicamentos para evitar essas insónias.

Entrei numa espiral muito parva: se bebia ou me medicava, não conseguia acordar fresca como antes, pelo que parava com ambos os métodos. Porém, quando parava, a contrapartida era ficar com piores insónias. Depois, pensava que podia regular o meu sono e o meu despertar intercalando as vezes em que retomava esses métodos. Mais uma vez, foi contraproducente. Só o percebi quando fui despedida, por várias vezes entrar atrasada no motel e, consequentemente, no supermercado, e ter desleixado o resto que ainda fazia.

Só me dei conta quando, no início do ano lectivo seguinte, fiz contas e não havia dinheiro para livros e materiais escolares. Só me dei conta quando percebi que o Daniel comia melhor com os restos do jantar que uma namorada, também colega de escola, trazia cá a casa quando se fechavam no quarto para estudar (e eu apenas entendia que “estudar” era apenas aquela clássica desculpa adolescente para namorar). Mas, só me dei conta realmente quando, entre tantas vezes, fui chamada à escola do Francisco, estando eu entre sair do trabalho no motel e entrar no do supermercado.

Fiz por estar presente daquela vez, embora com a pressa do costume e esperando resolver num instante qualquer questão que fosse para não faltar ao segundo emprego. Sem almoçar, entrei na escola, identificando-me à auxiliar e informando que o director de turma estava à minha espera. Eu ofegava de tanta pressa, atrapalhada em dizer quem era o meu filho, qual a sua turma e quem era o professor que tinha marcado comigo.

- Senhora Cátia Ribeiro, o professor Almeida está na sala 15. A senhora vai por aquele corredor, e é logo ali à esquerda.

- Em que coisa o meu filho se envolveu desta vez, Professor?

perguntei, assim que encontrei a sala 15 que a auxiliar me indicara. O professor olhou por instantes a minha figura desarranjada, as minhas olheiras. Disse então

- O Francisco não se envolveu em nenhuma confusão desta vez

ouvi e fez-se uma pausa. Fiquei confusa. O professor, amável, vendo que tentava manter-me séria e de pé, sugeriu

- Sente-se, por favor, Cátia…

eu sentei-me. Olhei o professor nos olhos e perguntei

- Mas então o que se passa desta vez? Foi malcriado com alguém, com algum professor? Eu peço desculpa, mas é que o Francisco…

ele interrompeu o que nem era raciocínio meu, pois de nenhuma razão me achava capaz, apenas balbuciava sem saber bem o que dizer.

- Nada disso. O seu filho até tem tido comportamento normal… mas é que…

outra pausa. Eu olhando expectante para o professor e ele olhando-me intrigado. Quebrei o silêncio com impaciência

- Mas é que…? Que se passa com o meu filho!?

o professor acabou por sentar-se ao meu lado e disse

- Desmaiou durante a aula de Inglês.

perplexa, quis ter a certeza do que tinha ouvido

- Desmaiou?!

- Sim, o Francisco desmaiou, perdeu os sentidos, a meio da aula de Inglês. Não se preocupe, está tudo bem com ele. Segundo a enfermeira, foi uma fraqueza…

- Uma fraqueza!? Mas onde está o Francisco, quero vê-lo, o que se passa!?

o professor tentou tranquilizar-me

- Calma, Cátia, ele está bem, está a almoçar…

e alguma coisa me alarmou, embora me parecesse sem sentido o que eu estava a imaginar. Perante o meu silêncio que procurava resposta ao que eu não tinha coragem de verbalizar, ele explicou

- Falta de açúcar no sangue, teve uma quebra de tensão. Ou seja, o seu filho estava há muitas horas sem comer, Cátia…

Naquele dia, ao fim da tarde, passado o choque pela falta de discernimento de como ou quanto os meus filhos se alimentavam, telefonei à Sara, para um encontro. Tinham passados dois anos sem nos falarmos, pelo que Sara ficou entre a perplexidade e a alegria de um reencontro. Não me preocupou o meu descanso, e se iria ter insónias nessa noite – era até de esperar que passaria toda a noite de olhos bem abertos.

Cheguei atrasada ao encontro prometido com a Sara, num café próximo. Mal me viu entrar, foi efusiva, abriu os braços, embora percebendo que o meu humor era contrário a essas manifestações, pelo que, após suspirar saudades, do longo abraço que me deu (e eu sentindo nesse abraço que não podia perder tal amiga), sentamo-nos à mesa e ela logo quis saber

- Está tudo bem contigo, Cátia? Parece que estás em baixo. Passa-se alguma coisa?

A minha resposta foi seca, querendo saber mais sobre o que ela me dissera cerca de dois anos antes, mas como se o tivesse dito naquele momento

- Diz-me lá então: como é que é essa coisa de eu ganhar dinheiro com o corpo que tenho?

_

terceiro episódio


Eu sei que podia optar por outros caminhos para além daquele que Sara me indicou naquela noite. No entanto, eu estava em desespero. As insónias não cessavam. Estava física e emocionalmente esgotada, com os meus filhos a serem prejudicados. Procurei ajuda médica, mas acabei numa lista de espera de meses para uma consulta, e uma vez despedida dos dois empregos que me garantiam o mínimo sustento, não tinha dinheiro para procurar um médico particular. A única tábua de salvação entre aquela tormenta ainda foi, tanto na padaria como no talho vizinhos, não me terem virado as costas, pelo que passei a ter como único rendimento a venda de rissóis e outros salgados que confecionava em casa.

«É que com o corpo que tens… podes ganhar muito dinheiro!». As palavras da minha amiga Sara – a quem, devo confessar, fiquei a dever muito, uma vez que garantiu a continuidade dos estudos dos meus filhos – ainda hoje me soam a algo que eu nunca pensei fazer, amargurando-me com o veneno da falsa moral com que cresci. Numa palavra: pecaminoso… fui educada e cresci como católica… e o facto de ter procurado Sara para me explicar como podia eu ganhar dinheiro vendendo o meu corpo ainda hoje me faz pensar que vivi desde então em pecado. Ainda que essa opção tivesse proporcionado, sem hesitação ou preocupação, que o meu filho Daniel pudesse entrar no curso de medicina; ainda que essa opção tivesse também proporcionado que o mais novo, Francisco, pudesse ser acompanhado por um psicólogo, e ter encarreirado para também seguir os estudos numa via profissional… Eu sei que tinha outros caminhos, outras opções, mas creio que não com resultados financeiros tão rápidos. E também pude, finalmente, tratar de mim, antes que fosse tarde demais.

Confesso que estava à espera de que Sara me explicasse sobre como prostituir-me. Não aquela situação mais infeliz de mulher da rua ou de bordel. Tendo reflectido nos dois anos em que me afastei dela, pensava compreender a razão por que a via usar roupa e acessórios que não seriam para o bolso de quem faz limpezas, bem como a razão de ela faltar cada vez mais ao trabalho. Após a nossa zanga no hotel, deixei-me a acreditar que ela talvez pudesse ter enveredado pela prostituição de luxo, ou o que vulgarmente se chama de acompanhante.

Então, quando a procurei para que me explicasse essa situação, ia já convencida de que, aceitando essa vida, teria de sacrificar não só o corpo, mas também noites, senão dias inteiros. Sentia, porém, um ligeiro conforto, tão ingénua por imaginar que os clientes não seriam quaisquer broncos ou asquerosos que procuram putas de rua ou nos esconsos de qualquer casa de meninas. Mas, depois, pensando melhor, era evidente que, mesmo entre homens ricos que procuram acompanhantes, podia também encontrar de tudo: novos, velhos, limpos ou porcalhões, asquerosos ou bonitos, mas também toda a tralha de grunhos e tarados com fetiches que nem ao diabo lembra. No entanto, sobrepunha-se na minha ideia aquela versão romantizada e ingénua da acompanhante que apenas serve de companhia a senhores que provavelmente até dispensariam serviços sexuais – ou, pelo menos, não tão sórdidos.

Estava muito enganada. Sara foi começando aos poucos. Com apenas um telemóvel e uma conta em várias redes sociais, foi-se mostrando semi-nua – a verdade é que ela era assim mesmo, gostava de se mostrar em poses sensuais, e a possível nudez que a rede social permitisse. E isso ainda no tempo em que andávamos juntas. Via as suas publicações e tantas vezes lhe dizia

- Só te falta fazeres topless nestas fotos… não tens vergonha? Olha que qualquer dia ainda te aparece um maluco…

comentários que lhe davam muitas gargalhadas, entre lugares-comuns com que me respondia

- Vergonha é roubar! Então que mal tem em mostrar? Se fosse feia… o que é bonito é para se mostrar, Cátia!

O facto é que eu já tinha dado conta do quanto ia crescendo o número dos seus seguidores de dia para dia. Então, naquela noite e nos dias seguintes ao nosso reencontro, ela mostrou-me como aquilo lhe fez render dinheiro.

Foi conhecendo pessoas que faziam o mesmo com maior facilidade com que eu fritava os rissóis que vendia. Pediu emprestado acessórios de luz e vários suportes para melhorar as fotografias que publicava. Procurava telemóveis com melhores camaras para aumentar a qualidade das fotos. Para provocar, acrescentava palavras como isco às suas publicações. Em pouco tempo passou de poucos milhares a dezenas de milhares de seguidores. Entre as pessoas com quem ela trocava experiências online, uma delas sugeriu-lhe o que depois me quis sugerir: havia outras plataformas para fotos e vídeos mais ousados, procuradas por utilizadores que pagavam. Pagavam, só para ver.

Portanto, sem qualquer contacto físico, o que me sossegou daquela questão sobre quem me calharia! Então, construiu um cenário em casa onde se pudesse mostrar, e a plataforma pagava-lhe uma percentagem do conteúdo que ela publicava e que os utilizadores pagavam para ver. E foi recebendo dinheiro. Quantos mais seguidores tivesse, mais possibilidade havia de quem quisesse pagar só para ver o seu corpo, e pagavam consoante o tipo de conteúdo. Era uma questão de preço, e de negociar. Só vais até onde queres ir. E também, quando os utilizadores ficavam satisfeitos, ofereciam gorjetas. Fiquei abismada perante aquilo. Mostrou-me como fazia, vi as fotos em várias poses, e os vídeos, tudo o que podia render mais ou menos. E mostrou-me a nova casa, entrei no carro dela como nenhum outro que teve, e contou-me dos sonhos que queria realizar. Reais, exequíveis, nada de sonhar alto a ver se um dia.

Tive dúvidas ainda, claro. Era uma outra forma de prostituição. Mas o único dinheiro que entrava era apenas da venda de salgados para o talho e para a padaria onde eu ainda ia dando uma ajuda no atendimento. Dinheiro tão parco que não dava para quase nada. Contava, humilde e agradecida, com a ajuda da minha amiga para manter os meus filhos na escola. Encorajada por ela, segui-lhe os passos. Primeiro nas redes sociais em que fazia apelos, mostrando mais ou menos o que podia. Algumas daquelas dúvidas sobre se seria realmente o melhor caminho a tomar, a par da fraca aderência que tive no princípio, fez-me desanimar mais do que uma vez. E teria desistido se não fosse a insistência constante da Sara, que ainda me ajudava no figurino.

Nesse processo, algumas pessoas começaram a reconhecer-me na rua. Não por ser a Cátia que fazia os rissóis que compravam no talho ou na padaria. E nem por isso pessoas mais próximas. Eram outras pessoas, vizinhos mais distantes. Principalmente homens, uns mais atrevidos do que outros. Diziam, variavelmente

- Olha a Cátia, a nossa vizinha do insta!
- Ai se lhe pusesse as mãos, vizinha, nem sabe o que lhe faria!
- Cátia, queres vir lá a casa?

o que tinha tanto de constrangedor como de aliciador para continuar. Em algumas dessas vezes, Sara estava presente, e era ela quem ia respondendo à letra por mim, defendendo-me. E defendia-me mais vezes das mulheres que me insultavam do que dos homens que me assediavam. O nome da minha conta, à conta desses episódios, foi ela que escolheu: «Cátia, a vossa vizinha», o que, como seria esperado, teve consequências.

Eram inevitáveis, mais tarde ou mais cedo. Por exemplo, e do que a mim atingia directamente, foi ter de deixar de fazer as minhas compras na vizinhança, como se acabaram as encomendas dos salgados, quer no talho, quer na padaria. Aliás, na padaria, no último dia em que lá entrei, querendo ser eu a mesma Cátia de sempre para toda a gente, e por isso disponível para o trabalho extra, fui confrontada pela mulher do dono dizendo que não queria putas na loja dela. A Sara descobriu depois que o homem da senhora era meu seguidor.

Antes que o ano findasse, e após quinze dias de férias a sério em praias da Tunísia, com Sara e os meus filhos – eles tão divertidos como nunca os vira em 20 anos – já não precisava de favores e de empregos precários. Sentia-me dona de mim mesma, ainda que precisasse de mais tempo e dedicação para poder continuar a fazer render a minha imagem. E isso seria até quando?

Questão que fiz a mim mesma desde então. Nunca pensei em desistir, porém. Levaria até quando pudesse. É que… foi a melhor forma que encontrei para conseguir criar os meus dois filhos, e garanto o resultado positivo, bastante até. Daniel é quase médico, o Francisco trabalha com computadores e, a expensas próprias, entrou num curso de engenharia informática. Sempre me preocupou que os meus filhos soubessem da razão por que eu, já não tendo de sair de casa, conseguia ter mais dinheiro do que nos anos em que trabalhava arduamente em vários sítios. Naquele outono, após as merecidas férias em tanto tempo sem as ter, tive a inesperada prova de amor e compreensão.

Juntaram-se ambos, com cara séria, o Daniel mais sereno que o Francisco, que se manifestava muito nervoso.

- Que se passa convosco? Está tudo bem?

perguntei-lhes, desconfiada. O Daniel olhou o irmão, este encolheu os ombros como quem diz

- Avança, quero lá saber

tão ao seu jeito de sempre; e só ouço da boca do Daniel

- Mãe, sabemos o que fazes. Compreendemos agora por que mudou tanto a nossa situação

e eu muito constrangida, procurando um remate para aquela circunstância

- Deveis isso à Sara, ela ajudou-nos muito

o Daniel continuou, enquanto eu o olhava sorrindo, embora com horrores do que viesse dali

- Sim, mãe, a Sara… vocês… Nós sabemos de tudo. Como é que fazem…

e voltou a olhar o irmão que estava cabisbaixo, talvez sem coragem para olhar-me, o que majorou o meu desespero

- O que queres dizer, filho? Olha, é que a mãe procurou e procurou, e estávamos tão mal, e…

tentei numa vaga explicação, mas ele interrompeu, falando como vomitando o que, certamente há mais tempo que eu pudesse imaginar, tanto queria dizer

- Nós sabemos o que fazes, a nova casa é muito melhor, agora temos o que queremos, e… eu e o Francisco sabemos que é um sacrifício que fazes, e…

a minha vertigem era cada vez maior

- … e compreendemos. Mas queremos dizer-te que eu e o mano prometemos que não vais ter de o fazer mais. Não combina contigo, mãe, mas compreendemos porque decidiste assim. Eu estou a organizar a minha vida, o Francisco já trabalha e tem também as suas coisas, mas prometemos que, tanto o que nos for possível, não terás de o fazer mais… Desculpa, mas é que não queremos que passes a vida nisso…

Verteram-se umas lágrimas dos meus olhos, a tentar suportar, mas a comoção foi maior. Acabei num pranto, e eles também. Ficamos os três em soluços. Que confusão naquelas cabeças, apesar de já não serem crianças… E confesso que só então pensei, amargurada, o que poderia ter feito diferente para que eles não soubessem da situação por si próprios... onde é que eu tinha a cabeça?

E por isso fiz uma pausa. Para lhes dar espaço e confiança de que, realmente, conforme lhes confessei então, foi o último dos planos para que conseguíssemos sair da pobreza a que estávamos prometidos. Não que sejamos ricos hoje, apenas vivemos melhor. No entanto, há sempre dificuldades, e esta actividade nem sempre tem bons resultados. Por causa dos vizinhos, mudamos de casa, mudamos a rotina. Deixamos amigos. Compreendi a posição deles, com certeza foram incomodados pelos que sabiam quem era a mãe deles e o que fazia. E mais uma vez, quando eles provavelmente sofriam em silêncio, eu estava muito ocupada, sem me preocupar com cenários desses. Trancava-me num quarto feito estúdio, despindo-me ou vestindo consoante o fetiche de quem me pagava.

A pausa foi curta, aliviados os corações desde aquele dia. Preocupava-me na mesma aquele defeito, como pecado e imoralidade. Tudo o que pudesse ser visto por um filho cuja mãe, afinal, se prostituía. Acontece que as contas sempre pesaram, pesam sempre. E quanto mais desafogado se está financeiramente mais tentação há para outras aventuras e desejos de ter seja lá o que for. Portanto, as contas pesam. E a pausa foi curta. Eles compreendiam e prometiam que seria a vez deles de fazer algo por mim. Ou seja, que a mãe deles não teria de continuar com aquele modelo de prostituição. Ligeiro, é certo; sem contacto físico com os clientes, correcto, mas, ainda assim, prostituição. Afinal eu vendia o meu corpo e fazia, a solo, o que os clientes mais queriam. Obviamente, isso também é prostituição.

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quarto episódio


Aquele momento com os meus filhos não me demoveu, apesar de ter ficado a pensar que poderia ter gerido melhor a situação, de pelo menos tentar explicar-lhes porque é que eu tinha deixado de trabalhar nos locais habituais e porque, mesmo assim, a nossa vida tivesse melhorado muito e em tudo. Ter-lhes explicado que, apesar de mostrar o meu corpo, nunca nenhum homem me tocou.

- Mas isso é mesmo verdade, Cátia? Nenhum homem te tocou?

Nunca. Mesmo. A sério, acredita. Após ter abandonado o pai do Francisco, que me infernizou a vida, ainda tive uns encontros… Em dois ou três, sei lá bem, acabei na cama com eles. Depois, como disse, as coisas foram ficando cada vez mais difíceis, e não tinha tempo para outra coisa senão trabalhar. Não tinha tempo para me preocupar com ter nova relação ou reencontrar o amor, até porque fiquei calejada no período que vivi com o pai do Francisco. Portanto, estive anos sem tocar ou que fosse tocada por um homem… Depois… apareceste tu.

- O que é que se passou, entretanto, desde o dia em que os teus filhos te disseram que sabiam como ganhavas a vida?

Continuei. Naquilo que hoje tanta gente declara ser a sua actividade: criadora de conteúdos digitais. Os dias não eram muito diferentes, por vezes lá aparecia um seguidor no chat privado a pedir coisas que eu à partida não faria, mas como podia estabelecer o preço para pedidos especiais, só mesmo a quem tinha dinheiro e queria pagar para ver é que eu cedia… A preços mesmo exorbitantes, tipo centenas euros… largas centenas de euros.

- Mas eram pedidos extravagantes?

Ah, sim, alguns deles pediam mesmo que eu fizesse cenas porno com outras pessoas, fosse com homens ou com mulheres… perversões e fetiches dessa qualidade. A esses é que eu pedia mesmo grandes valores, muito exorbitantes, mas indicava-lhes um preço alto já sabendo de antemão que nunca o pagariam. Aliás, só pagavam se realmente eu produzisse o conteúdo pedido e fizesse a entrega das fotos ou vídeos. Mas não, nunca nenhum desses aceitou o preço que lhes indicava e, invariavelmente, insultavam-me…

- Então cedias a quê?

A coisas muito parvas, e nem sempre obscenas ao ponto de ter de mostrar em detalhe as minhas partes íntimas. Lembro-me de rir perante uma mensagem privada de um fulano que queria ver-me a chupar o dedo grande do pé.

- E concordaste?

Então, já tenho 44 anos e promovo-me como sendo uma mulher madura com corpo de mãe. A verdade é que nunca fui de muita elasticidade… Mas esse pedido divertiu-me, como outros que tive, mas nesse em particular, concordei em fazer depois de verificar que conseguia dobrar-me para poder chegar suficientemente com a boca ao meu dedo do pé… e ele ficou muito contente, ainda que lhe tivesse cobrado cento e poucos euros… É parvo, eu sei, desculpa. Mas que é de rir, com certeza concordarás…

- Cento e tal paus para ver uma mulher a chupar o próprio dedo grande do pé? Sem dúvida, hilariante! Mas, o que foi feito da Sara?

Olha, uma desgraça.

- Então?

Foi para Londres, disse que lá é que aquilo fazia dinheiro a sério. Eu não entendi, a plataforma é europeia e pertence a uma empresa que produz todo o tipo de conteúdos online para adultos. Qualquer um, seja de que país for, pode aderir e obter o que procura, sejam as mulheres oriundas de onde quer que seja. Tinha colegas brasileiras, outras indianas, até do Irão, vê lá… A Sara nunca estava satisfeita. Eu suspeitei, novamente, que ela, cansada daquele modelo e de dias melhores e outros piores, tivesse ido para Londres para ser acompanhante.

- Ou seja, subiu no degrau da prostituição.

Não. Ou seja… não sei que degraus subiu, mas não foi para ser acompanhante. De vez em quando a plataforma envia-nos convites e sugestões, mediante os seguidores que temos, para novas experiências.

- Que tipo de experiências?

Sempre conteúdo para adultos. Mas esses convites eram para produzir pequenos vídeos pornográficos, ou mesmo para produções maiores, como longas-metragens com guião a sério e essa coisa toda. Nunca me interessou. Mas a ela sim, soube depois.

- Disseste que foi uma desgraça… achas isso degradante?

Não sei… eu não o faria. Fazer cenas de sexo com completos desconhecidos, e aquelas cenas todas que se sabe. Não, tenho os meus limites. Mostrar o meu corpo é uma coisa, fazer sexo para filmes é outra. Mas a desgraça não foi por aí. Ela começou a consumir drogas. Não conseguiu aguentar, era tudo uma freima. Ficou de rastos, emagreceu demasiado e acabaram por pô-la de parte, segundo o que me contou. Só a procuravam para papeis menores ou cenas de orgias em que era usada para o fim, mas abusada pelos outros actores… se é que são actores. Pouco se distingue, numa cena de sexo pornográfico, do que é mecânico, se é apenas fingir mas fazendo-o, do que pode ser um abuso real. Disse-me que havia cenas que ela interrompia, vomitando de nojo, e desistia, ia para casa, acabando por ser drogar com o que tivesse à mão. Agora está a tentar reabilitação. É essa a desgraça.

- Achas que te salvei de um caminho igual?

Só podes estar a brincar. Não, eu nunca seguiria esse caminho. Se já foi difícil encarar os meus filhos dizendo-me que sabiam como eu acabei por fazer dinheiro sem trabalhar da forma como toda a gente faz, nem quero pensar no que eles diriam se me vissem como actriz porno… Eu sei que o Francisco, mais que o Daniel, não aceitou muito bem, embora nunca o tivesse dito. Mas eu conheço-os, e sei que a minha opção foi difícil para eles aceitarem, e certamente muito embaraçosa… Ainda hoje não sei em que circunstâncias eles souberam, coro de vergonha e com muita raiva de mim mesma, a imaginar se eles terão visto a mãe nua… ai! nem quero pensar nisso!

- Esquece então, estamos aqui juntos e tu já deixaste essa coisa. Faz parte do passado. Obrigado por me teres contado tudo.

És um fofo. Eu é que agradeço. Por teres insistido. Para mim, eras mais um daqueles parvos que se diziam apaixonados por mim, mas acabaste por provar o contrário.

- Não te lembras de nada? A sério, não te lembras de mim, de quando vivias no bairro? Eu era mesmo teu vizinho, uns andares acima…

Não... desculpa! A sério! Eu não percebia muita coisa, andava sempre naquela correria… Como ia perceber que um miúdo de vinte e tal anos, a morar com os pais

- Na verdade eram quase trinta… Quando segui a tua conta, tinha acabado de fazer 29 anos

e só te interessavam mulheres mais velhas

- Sim. Estava a ver os reels e apareceu a tua foto com a legenda «posso não ser quem procuras, mas já que apareci no teu ecrã, será que me vais dizer olá? Terás coragem para o dizer?», e eu reconheci-te, é a Cátia que vivia no rés-do-chão, e lá consegui a tal coragem para comentar, disse olá e esperei dias inteiros que me respondesses, mas nunca o fizeste

ohhh, eu sei… Eu não respondia a nenhum comentário, eram apenas iscos, meu querido… e não é que o mordeste?

- Pois mordi. E fui arrastado pelo anzol para zonas onde eu não esperava

a plataforma

- Sim, e tu nua lá. Eu naquela altura sem dinheiro para grandes vôos, mas aproveitei uma promoção de grande desconto por trinta dias e disse cá para comigo: oh, que se foda, é menos umas cervejas. E pronto. Do resto, já sabes.

Foste muito simpático e delicado. Isso encheu-me o coração. Já to disse, mas volto a dizer-te: ainda que achasse que serias mais um daqueles tontos que se apaixonam por fotos de um fulana nua ou semi-nua, quando me enviaste a mensagem a dizeres onde tinhas vivido

- Mensagem essa já na plataforma, a qual tu também demoraste a ler e mais a responder

fiquei abismada. Sabia lá, fui tão maltratada naquele bairro desde que souberam! Sossegaste o meu coração. Não, melhor: amoleceste-o, a par de ter ficado intrigada.

- Amoleci. Está bem, foi só isso?

Sabes que não… Vá, fiquei tão intrigada e curiosa que lá aceitei encontrar-me contigo, coisa que eles, na plataforma, aconselham vivamente a não aceitar encontros com os clientes.

- Mas estamos aqui. Finalmente.

Sim, meu amor, estamos aqui.


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fotos por cortesia de @kate.yourneighbor (Instagram)
nota: o conto não retrata a modelo consultada, é uma história ficcionada

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