a inundação

[glosa pela minha tradução livre de Here Comes The River, canção de Patrick Watson, tema do álbum Wave, de 2019]

Mote:

The windows turned to fishbowls
The city to seas
The cars were drowning underneath your feet
The children were swimming from the top of the trees
Crowds of umbrellas were staring in mis-belief
Well, Mary kept sewing
Holding on to her TV
Even if the water was rising past her knees
Here comes the river
Coming on strong
And you can't keep your head above these troubled waters
Here comes the river
Over the flames
Sometimes you got to burn to keep the storm away
Sometimes
Sometimes you got to just
Nobody told you it was going to be this hard
Something's been building behind your eyes
You lost what you hold onto
You're losing control
There ain't any words in this world
That's gonna cure this pain
Sometimes it's going to fall down on your shoulders
But you're going to stand through it all
Here comes the river
Coming on strong
But you can't keep your head above these troubled waters
Here comes the river
Over the flames
Sometimes you got to burn to keep the storm away
Sometimes
You gots to just

Glosa:

As janelas transformaram-se em aquários, olho de boi a espreitar para fora, atento às negras nuvens que estão a fazer da cidade um mar. Os carros afogam debaixo dos teus pés, quando os agitas, a fugir, meio flutuando. As crianças nadando, contentes, risos entre os mergulhos, fazem pose no topo das árvores mais altas que a cidade tem, e atiram-se, profissionais nadadores, em saltos mortais.

Multidões de guarda-chuva aberto vendo tudo acontecendo. São pessoas aterradas, não acreditando ainda na sua falta de fé, na sua falta de discernimento. E assim vemos Marta, pelo olho de boi do aquário, vemos para dentro da sua casa de pessoa solitária. Marta vai continuando a costurar, enquanto se segura à sua televisão boiando, já a água passa pouco mais acima dos seus joelhos.

E o rio corre, passa rápido. Vê como corre e tudo inunda, como fera. Que nem consegues manter a tua cabeça à tona com tal violência das águas. E vai, assim, o rio, por sobre as chamas. É que por vezes há-que arder para manter longe a tempestade. E por vezes… sabes, tem vezes em que só tens de aguentar.

Ninguém te disse que seria assim tão duro, eu sei. Como se algo sendo construído por detrás dos teus olhos. Vais perdendo tudo a quanto querias agarrar, se já perdido o teu controlo. O horizonte encharcado, tudo se esvai a enorme velocidade. Não existem agora palavras neste mundo que possam amenizar essa dor. Tudo se vai como num sonho de angústias antigas, o peso todo carregado caído sobre os teus ombros. Se te alivia perdes peso para, leve como canoa em bambu, te deixares a perder tu mesmo, correndo com as águas, meio flutuando. 

Sei que queres manter-te firme, apesar de tudo. Mas aqui vai o rio, na sua forte corrente. Como vais conseguir manter a tua cabeça à tona de tanta violência desta água sem ondas, apenas corrente que arrasta? Vais firme, que por vezes é preciso arder com tudo à espera que a tempestade passe, e se afaste. E, por vezes… é isso que tens de fazer: aguentar. Ou esperar, com o teu corpo então fluido.

Comentários