crónica sob o calor de agosto
Não tenho grandes memórias da minha infância de dias como este, sob um calor tórrido de agosto, um mês que, talvez por isso, nunca gostei. Hoje, caminhando em alcatrão sobreaquecido pela alta temperatura, a sola das sapatilhas
(diz-se agora dos ténis)
iam colando e derretendo. E, por isso – coisa rara! –, o cheiro do alcatrão quente, fez-me lembrar a ocasião – não era sequer agosto – em que que alcatroaram uma rua da vila onde passei os meus primeiros anos. Rua com pavimento novo que levaram os miúdos, como eu, a elegê-la para jogar à bola.
E memórias puxam outras memórias. Foi no tempo da puberdade, observávamos as ervas crescendo na primavera e, logo depois, a começar o verão, espigavam como se fossem sementes de trigo ou cevada – sabíamos lá bem –, e os bichos que a terra tinha. Nessa altura, observavam-se os bichos de fora do corpo e os bichos de dentro do corpo. O nosso.
Havia até diarreias tamanhas como se a idade-média nunca tivesse caducado. A par disso, era costume encontrar umas cobras – percebi, anos depois, que não passavam de meros alicranços, que metiam medo como se fossem víboras venenosas. Assim me vem à lembrança a figura hilariante do Quim, aquele que se dizia ser “do-monte”, um rapaz que apanhava muitas daquelas
(menos cobras, mais alicranços)
bichas no tanque público para lavar roupa, onde a Dona Madalena ia, dia sim dia não, a lavar as roupas sempre conspurcadas do marido e, pela sua maneira de vestir quando estava calor, fazendo inveja às vizinhas mais velhas por causa do decote que exibia.
Então, o Quim-do-monte, que estava em idade de sacudir-se por dentro das calças devido às formas femininas, estava sempre onde as podia encontrar: às formas e às ditas cobras. Numa dessas vezes, no tanque público, apanhou uma longa cobra d’água, sob o alvoroço das mulheres que lavavam a roupa. Apanhava-as e, depois, como que exibindo um troféu, trazia-as, pelo pescoço, para o centro da vila. Pelo pescoço é como quem diz: logo abaixo da cabeça, que longo pescoço pareciam aqueles bichos ter que nunca acabava. O Quim-do-monte era pródigo em apanhar tal bicharada, entre as ervas altas e húmidas ou nos tanques públicos como aquele. E serpenteavam os alicranços e cobras d’água, enrolando-se nos braços do moço, movimentos que arrepiavam quer a pequena ganapada, quer o mulherio que lavava a roupa.
Mas o Quim, porém, que com certeza devia comer de toda e qualquer carne, bem ou mal-cozinhada, nenhum nojo lhe fazia o modo como a bicharada que apanhava se contorcia. Dizia ele, entre gargalhadas, que era como as minhocas que lhe saiam do cu, quando defecava. É certo: de uma outra vez, chamou todos os que estavam chutando bola na rua, para irem ver que era verdade. Subiu ao pinhal pelas raízes duras dos eucaliptos e, logo ali, entre o denso crescimento dos fetos, baixou as calças e puxou o detrito que tinha na barriga. Arrancava uma folha mais longa de um dos fetos mais próximos, a fazer de papel higiénico e, concentrado ao puxar, exibia depois, serpenteando, um bocado das longas ténias que lhe saturavam os intestinos.
Ria-se o Quim alarvemente, percebendo que muitos dos miúdos fugiam a correr, e depois alguns ainda o acusavam de truques, que ele tinha apanhado um alicranço e queria fazer crer que tal bicho lhe tinha saído do cu. O Quim-do-monte encolhia os ombros, dando assim maior crédito aos que pouco duvidavam, enquanto se decepcionava com os duros cépticos. É de registar a nojenta façanha do rapaz, não só quando isto fazia, assim que podia e lhe revolviam as tripas, ou do modo como salpicava o decote da Dona Madalena lá no tanque, entre ternurentos assaltos a outras mulheres que por ele passavam. Uma vez, entretidos que estávamos numa partida de bola, o Quim exclamou
- Olha quem vem lá
apontando a uma jovem mulher passando na rua. Apostou com os mais ingénuos em como seria capaz de apalpar a mulher entre as pernas. Nós, sempre duvidando, galhofávamos. Porém, o rapaz, meio a disfarçar, fazendo-se ao drible de alguém que estivesse na posse da bola, mal a mulher passou por onde jogávamos, fingiu cair por falhar o chuto na bola, e rastejou sob as saias da jovem, pondo-lhe assim a mão entre as pernas. E soltou grande gargalhada de regozijo, exclamando:
- Era fofo demais, deve ser do penso!
ao que nós, uns incrédulos a verem a mulher afastar-se entre resmungos e insultos, outros em gargalhadas duvidando da façanha, logo ignoramos a desfaçatez e o exibicionismo do Quim, acabando por discutirmos com quem estava a bola antes daquela tropelia. O Quim-do-monte sempre quis ser e fazer o quanto os outros desejavam e/ou não tinham coragem. Só que ninguém teria estômago para tanta porcaria que ele fazia. Eram outros tempos, passaram quarenta anos. Soube-se que o Quim-do-monte acabou por morrer só, longe demais para indicar no mapa. Uma seringa com que ele imaginou que havia de matar a bicharada que lhe assaltava as tripas. Deixou de ser do monte para ser da rua, mendigo e drogado. É o que dizem.
Agora, no fim da minha caminhada, já não há alcatrão sob os meus pés e, rindo para mim mesmo a recordar estes pequenos episódios, quase que ignorava o calor. Curioso como o cheiro do alcatrão ter despertado a memória da primeira rua com piso liso da vila. Era a nossa “rua-de-piche”, muito moderna, no início da década de oitenta do século passado. Será ainda hoje assim, virado o século em duas décadas? Com certeza que não. Mas, se ainda fosse, não seria a mesma rua. Sequer com miúdos jogando à bola. Espero é que o alcatrão que tenha não estrague as ténias
perdão
os ténis de quem lá passar, sob este calor de agosto.
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(foto de autor desconhecido)
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