kitsch de sábado à beira-mar


São os suspeitos do costume: sentam-se em largas esplanadas, perna alçada ou estendida sobre outra cadeira, com prato de tremoço ou amendoim na mesa acompanhando o copo embaciado pela frescura da cerveja à pressão, nas suas borbulhinhas tão sedutoras. Abandonam suas mochilas ou sacos a tiracolo no chão entre as beatas já esquecidas de que foram, outrora, cigarros, cigarrilhas, charutos, e também charros. Os carros passam rugindo lá atrás, na estrada que é, afinal, à frente do bar que aqui dá acesso. Rugem numa competição pelo melhor lugar de estacionamento. Há testemunhas sobre o caso de um quase atropelamento, na faixa pedestre sobre a estrada, uma família inteira

(casal, cada um na casa dos trinta anos, com uma criança cerca dos cinco orientada pela mão paternal, e uma outra, aproximada dos três meses de vida, adormecida pelos tropeções da cadeirinha de bebé com rodas, empurrada por força maternal, com a sua pueril cabecinha sob sombrinha articulada, e ainda um cão sem definição de género ou raça, pequenino, a imitar peluches de feira, desatrelado, em missão de cheirar bostas e urinas de alheios indivíduos da mesma espécie, ou ridiculamente a assustar, de caninos sobressaídos, os transeuntes incautos)

Em frente à esplanada há o mar, essa entidade imensa, profunda por natureza e lírica por inclinação da maioria, razão de ser e inspiradora com o seu vai-e-vem das águas marulhando. Assustador quão apaziguador este mar é, na sua costa atlântica ocidental.

E então, o livro, de centenas de páginas, mais de meio kilo de papel e letras, mal-amanhado nas mãos mais delicadas, cheio de histórias mirabolantes mais ou quão pesadas, conforme a ligação ou o desligamento de quem lê ou finge ler. Ou as cabeças baixas sobre o pequeno ecrã do aparelho que ainda chamam de telefone, dedos rolando, olhares muito atentos uns, divertidos outros, e uns tantos indiferentes

(nada contra o par de jovens namorados na linha da rebentação, mãos entrelaçadas, cabeças de vez em quando juntas a conjugar confidências capazes de fazer corar as velhas aprisionadas por morais antigas, que apenas surgem no cenário como pontos infelizes a dar razão à constituinte sociedade que todos aceitam)

Mortais são ainda as quase medonhas ondas que não permitem os corajosos imprudentes a decidirem pelo mergulho sem perder ar e vida, mesmo que sedentos de água por exposição prolongada a essas outras ondas do sol pré-estival-balnear, diagonalmente aquecendo muito e, consoante latitude, já queimando. E a areia consentindo, por fervência, que se escaldem os pés, tão consumidos que vão já por feridas nos esbugalhados grãos mais salientes entre lixos naturais ou artificiais em suas formas acutilantes.

E os suspeitos do costume, cheios de graça por estes momentos graciosos e

(consp)

inspiradores, acabam, como crentes de qualquer doutrina, a louvar, com rezas de dezenas avé-marias ou semelhantes, milagres desta natureza, por tão delicado cenário de felicidade equívoca que concretiza, em pleno, a aturdida vontade saudosa deste mui desejado sábado kitsch

(os bordados das mães, os dias de chuva esguios a observar quadros de pintores de rua nas salas amplas de acessórios, e suas tisanas atreladas: ficou tudo esquecido até que outro inverno, por languidez ou tristeza maior, surja no seu quotidiano)


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foto de autor desconhecido

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