clausura
Os dias foram crescendo e, sem que eu desse por isso
(dormindo, o trabalho, comendo, o trabalho, dormindo, o trabalho)
tudo foi acontecendo. Já as margaridas cobrem de branco os prados rebeldes de vento e verdes de tão jovens. Foram as chuvas, foi o sol adocicando as tardes, foram as chuvas novamente, e é abril. E ora torna o sol, ora tornam as chuvas, de levezinho levantando o aroma da terra. O hálito primaveril espalhado como uma brisa, enquanto eu
(comendo, o trabalho, dormindo, o trabalho, comendo, o trabalho)
a esquecer-me sob a camada de mofo dos papéis, entre paredes cariadas de humidade e bolor, com a fruta magoada nos dedos e os lençóis doridos do meu corpo.
Onde existo? – pergunto ao espelho que me reflecte de esguelha, como se a resposta
(dormindo, o trabalho, comendo, o trabalho, dormindo, o trabalho)
estivesse na fresta da janela esconsa de estores húmidos pelas chuvas geladas do inverno, sem sol adocicando as tardes. Entre o sono e a modorra, recordava o melro que mora onde não há nem bolores nem lâmpadas com o seu ar de fadiga contra o fio de fumo dos cigarros queimados.
Agora, o melro do outro lado da frincha onde um bocadinho das chuvas, um bocadinho do sol, perfeitamente alheio ao
(comendo, o trabalho, dormindo, o trabalho, comendo, o trabalho)
sabor amorfo da fruta magoada. E aos lençóis doendo-lhes o meu corpo. As únicas margaridas que pude ver enquanto tudo foi acontecendo estavam numa fotografia a que o tempo deitou alguma piedade.
O melro pareceu-me que assobiou sempre.
_
(foto de autor desconhecido)
Comentários
Enviar um comentário