doida varrida
É doida varrida, a poesia. Primeiro espreita, oblíqua, sob as pálpebras cobertas de sono. Insinua-se depois numa vertical dignidade, assomando nos sonhos como um falo que murmura segredos ao sangue latente, incomodando o descanso dos músculos. Faz-se por fim horizontal, após horas de espera, em matutina apreensão, a mitigar a mediocridade enquanto não se apaga o cigarro entre o ócio de dois dedos suspensos. Eu frequento prostíbulos, na tentativa de entender como se transformam os perdidos da fome e da sede em redentores, para escrever com discernimento: se ver e entender o mundo é apenas um desabafo da alma ou se me obriga a colocar os braços estendidos com as mãos em lágrimas. Tu, que intentas igualmente cultivar poesia: como consegues que o caule te devolva flor em tão árida terra? Que poema podes urdir? É com um sorriso de plástico adubo? Ou são negras constâncias, túneis enviesados de palavras sem qualquer inclinação geométrica? Vem ver o que tenho sob esta máscara de poeta intencionado: escrevo sobre o que há no mundo e nas pessoas, ou então finjo-me calado, gatinhando os dedos sobre a ruína das minhas luras que atravessam resíduos de compostagem natural. Isolo-me, na dúvida, inquieto e apreensivo. Muitas vezes nublado por um medo, como o guerrilheiro que se camufla dentro do mato com um punhal, atento a qualquer coisa que lhe retire a casa, o alpendre, a mulher, os filhos. Se eu pudesse enterrar a poesia… igual àqueles dias que nascem e são enterrados pelas sombras mesquinhas, enquanto o cigarro vai perdendo a sua intensidade numa espécie de fenda febril entre os lábios. Porque cadáveres abandonados são a maioria das minhas palavras por escrever, fedendo obliquas ou verticais. Só as que se deitam horizontais, à mercê da minha cobrição fértil e última, se somem debaixo da terra, sem cheiro, sem nojo por dizê-las. Com essas, a poesia que me intenta faz-se decomposta, para ressuscitar depois num tímido rebento entre a lama. Numa consistência rara, lutando contra intempéries. E está sempre contra mim, a poesia que me visita ou surge etereamente nos meus olhos mortiços com que encaro o que me rodeia, a espreitar pelas minhas janelas, umas soturnas, outras solarengas. Não sei o que lhe faça, a essa poesia dentro de mim, correndo nas minhas veias e, vezes sem conta, como sangue que acaba coalhado, interferindo com a coerência coronária. Poucos são os momentos que entre nós acabam numa artesã simbiose. E, mesmo quando isso resulta, apenas ficam as sobras do que foi entre o sono, os sonhos, e um despertar ensimesmado pelos fantasmas, bons ou maus, consoante se inaugura o dia. Portanto, doido varrido sou eu, a tentar a poesia.
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foto: Nam On Eman Nötr
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