desvio
Já não há outro mundo. Perdi o outrora e o amanhã em ti. Se sempre me foi difícil ver um futuro perante claridade, sigo cega agora, batendo com os joelhos nos móveis. Sou incapaz de fazer qualquer desvio, uma vez que foste tu o último. E perigosamente, não só para os joelhos, mas para qualquer osso meu, que sempre eras faminto por devorá-los, tanta é a carne
assim me dizias
com que se revestem. E, no entanto, doem. Como me doeu a tua nunca anunciada saída, bem como a tua inconstância quando parece que voltas e no segundo seguinte já não estás.
Envelheci em meio ano muito mais que nos 46 que hoje completo. Os credos cessaram, acabando também os gestos disparatados da solitária que se viu longe de quem ainda tinha esperança que resolvesse a sua solidão. Observa como esta tarde de março leva tudo devagar, com estas frias nuvens, num vai-e-vem sob um manso vento.
Está aí tudo, nesse mesmo vagar frio. Mesmo os abraços, os teus beijos. Actos que me surgem assim na memória, imagens fantasmagóricas como as antigas fotos em sépia, de moldura recortada e quebrada nos cantos. E sinto muito frio, embora tenha ouvido estes dias seriam mais quentes. Um frio que sustenta o que já não me nasce nos olhos, mas reflecte-se no vidro da janela, embaciando mal surge a minha imagem, entre as velhas e puídas cortinas.
Por não haver outro mundo, calam-se os movimentos em mim, crendo que ainda me segurarás em cada passada. Da esperança vã que ainda tenho e como espero que o confirmes. Imagino-te sempre quando se abre uma brecha, uma fraqueza minha, o súbito atordoamento que me deixa por instantes no cume de montanha de ar rarefeito, quase sem respirar, e tu como o herói que me renova os pulmões.
E percebo depois que não é assim. Arredas de mim o que achas que está
quem achas que está
a mais para ti. Mas, não serás tu a demasia? Fizeste com que mais engordasse. O que é a gordura? Gordos são os palácios com mais do que duas janelas, se nem em duas janelas assoma alguém. Gordo é o cinzeiro quando te vejo demorando demasiado tempo a retroceder dessa ingratidão. Gordas são as complexas fórmulas para calcular que, tão simplesmente, 2 com mais 2 resulta em 4.
E quatro paredes gordas são as que tenho, por demasiada penumbra. Quantas janelas tens? As que queres, e numa e outras crês ver todo o mundo. Pois eu me fico por esta, esperando-te. Sempre depreciei essa visão estreita, mas é a que tenho. A única janela que sustenta a minha espera de um dia voltar a ver-te, num desvio qualquer do destino.
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foto de Sergey Sergeev
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