postal ilustrado
Era de ouvir como apregoava a velha a última cautela rifando de azar os gunas que lhe passavam rente e que troçavam das suas pernas disformes. Mas a velha lá continuou no seu coxeio-pregão, saindo-se entre a multidão de turistas na praça, imitando aqueles arranhões da língua deles e a exclamar que a sorte só pertence a quem à sorte foi semeado, que as luas não estão, ao contrário do que dizem, para os cus levantados – a esses, só o açoite, disse ela, a velha. E eu fui emborcando o uísque que o empregado de mesa insistia em servir-me por ser do melhor, que coisa assim esta casa só oferece aos seus fiéis clientes. O lisonjeio levou-me várias vezes ao water-closet que, porém, pouca água terá visto, pelo menos hoje. Tinha aqueles escritos nas portas das latrinas, à maneira antiga, que esta é uma casa de respeito e de muitos anos, um ex-libris da praça, senão de toda a cidade, e o que aqui vê é o que sempre foi, faz quase cem anos. Escusou o ventre de murmurar as tripas mastigadas entre feijão lá em baixo onde o rio corre, que eu não cedi pousar o traseiro naquela espécie de museu da conspurcação urbana. Como já não se pode acender cigarros ou cachimbos nos ambientes fechados, fiz sinal ao empregado ufano que, de tão velho, nem precisou que utilizasse muitos signos dos dedos para dizer que só ia lá fora fumar. Ele logo espetou no ar a palma da mão de consentimento, e eu saí para o burburinho da praça, puxando o fumo da cigarrilha. A velha não sabia como vender a última cautela, esbracejava apontando para o bilhete, engelhado de tanto vento acomodar, que ali estava a sorte grande para quem em grande tivesse a esperança de mais uns tostões, porque tudo se varre, senhor, é como lhe digo, centenas ou milhões para os pobres é só para entreter, que logo tudo se esvai em meia dúzia de meses. Os turistas sorriam com as câmaras apontadas para o teatro nacional e eu a pensar: que grande monumento ali erguido, o testemunho de como é feita esta gente toda, um teatro. Que a vida, isso me segredou o velho quando regressei à mesa do café onde já me esperava mais uns euros do tal uísque especial, que a vida, segredou ele em voz alta por tanto barulho com que a máquina do café fazia em farinha os grãos apanhados por crianças envelhecidas na latrina-américa, que a vida faz o teatro e não o contrário. E eu, tão bebido, resmunguei de dedo frouxo estendido no ar: olhe que novidade, amigo, ainda que pudesse ser o contrário! Então, conseguindo pagar tal despesa enorme, volvi pelas ruas, descendo até ao rio, onde finalmente pude muito rir, e também chorar: já fazia noite. E era de ver, nessa ocasião, o acastanhado do uísque vomitado entre os pedaços das tripas mais alguns feijões inteiros. O que vale, murmurou um pescador em terra, enquanto olhava o douro de lama, o que vale é que o rio leva tudo.
_
(foto de autor desconhecido)
Comentários
Enviar um comentário