na vez da boca


Não me preocupa a natureza dos teus impropérios. Vituperiosa já é a nossa existência grávida de equívocos. Somos feras assim que o sono nos afasta da inocência a mendigar atenções. Diz-se do mundo assim selvagem, do salve-se quem puder. E aprendemos a afiar as garras, a espreitar a vítima na próxima esquina. Saciamo-nos da miséria alheia ainda que a nossa seja abismal. Cuspimos para o ar sem dar atenção aos telhados de vidro, o quanto as nossas cabeças rolam por imprudência, a maldição do olho gordo. Profetizam babosices as bruxas de picho riçado no lugar das melenas, e as fadas da ingenuidade encurralam-se lactantes num corridinho a salvar o mundo com estrelas e anjos e varinhas de condão. Já não há demanda para o homem, bicho cruel condenado à caverna de onde nunca tirou os ossos. Sacudo portanto os ombros, indiferente ao que me dizes, ao que me fazes. Virás na próxima esquina, quando de toda a delonga emergirem os teus medos encobertos – hoje são blagues, amanhã condenatórias heresias. E no ar sentirás um cheiro, uma sombra atroz, e nos teus ouvidos a morte arrastando covas à socapa. Mostrando-te os dentes a rugir. E verás então quem fui, quem sou: o leão na vez da boca.


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foto de Vladimir Konkin

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