Ingrid
Acrescentar verbos. Como se diz? Tu e eu, na língua estrangeira roufenha e gutural – como os gestos, quando mais ásperos. Tinhas Broch e Os Sonâmbulos nas mãos, leitura repetida e insistente, no idioma original. Deu-me para falar de Camilo, por réplica. Inteira, cheiraste. Vens de lá, confirmaste. Então, eu inteiro em ti: fui mais que perfeito, a confirmar pelos gemidos com que exorcizavas o silêncio, antes em modorra pela presença dos móveis que estalavam.
Hoje, tudo aqui já não me faz como quando fui contigo. Ingrid. Estranho nome em mulher como tu. Porventura nome eclético de um piano onde eu, leigo dos dedos e da leitura na partitura, soube cada uma das escalas? Como se diz? Aprendiz. Não. Vieram outras, enviesadas, antes que o teu nome pudesse preocupar-me. Ou seja, ocupar-me sem aquela distracção. Portanto: não cabe em mim outro nome adjetivo, senão reincidente; que noutros territórios aprendi e agora só no teu teimo, vendo em ti a inteira redenção.
Falta-te a estética europeia, afirmaste, com o livro sob o rosto, óculos em modo de ósculo com o texto que já só percorrias ao acaso. Enquanto eu acendia um cigarro. Dos proibidos. Das ocasiões proibidas. Olhaste-me acima das lentes e reprovaste: aqui não. O teu indicador meneando como um bêbedo. A tentar o cliché, lembrei de dizer que o teu nome – Ingrid – é um estrangeirismo, ao observar o tom da tua pele, a raiz dos teus cabelos, a forma como escondias o segredo do corpo, o gesto que fazias quando pensavas e volteavas no pensamento, poisando o indicador sobre a cova da bochecha, enquanto o sobrolho esquerdo assomando devagar numa esguelha de dúvida.
Ingrid: resultado de complicada fórmula com quase um século. As migrações, a atração pelo exótico, uniões nunca imaginadas. Para que acabasses por nascer nos confins da península, alimentada a pão de alfarroba até aos dez anos. Depois, foi como foi – uma espécie de genética obrigando a não criar raiz em parte alguma. Enquanto eu misturava leite com a broa de milho, por muitos anos sem conhecer outras paisagens senão o granito gasto e a ferrugem da cidade invicta.
Não insistas, atiraste, resmungando à minha primeira fumaça. Acrescentaste: essa pose está mais que ultrapassada, como se quisesses dizer que, ao meu rosto másculo de cigarro ao canto da boca, barba mal escanhoada, só lhe faltava o chapéu à cowboy, ou à garimpeiro, ultrapassados ambos ou não. Fomos todos cowboys e garimpeiros um dia, também um resultado de migrações, cada qual à sua medida. Portanto, quem és tu, Ingrid?
Deita-te ao meu lado, sugeri. Queres os meus dedos? Segue-os, levemente cega. Ouves? Os ruídos da chuva. As minhas falanges tacteando em ti os vestígios de pequenas pedras, raízes várias em filigrana, ou o limo das folhas húmidas, já caídas. Os meus dedos seguiam, como lesmas, auscultando cada poro teu. Ouves a sua progressão?, insistia. Um ruído murmuroso e líquido como quando a língua e lábios mexendo a saliva. Mosto. Colo das sementes.
Fui eu quem regressou com a semente por germinar. Aguardando a primeira faísca do solstício ainda por vir. A desejar coisas em vão, como a espreitar por ti no aeroporto. Com a minha esperança bacoca de um pobre do midi, que ignora os portos onde tantas vezes embarcaste umas vezes, desembarcaste outras. O pobre do midi sem esse mistério dos sonâmbulos, que terra alguma (garantias) lograram fazer despertar. Um pobre do midi cujas insónias e esperanças se alimentam hoje, reciprocamente. E, apesar das minhas insistências, nenhum responso teu.
Bebo. Talvez assim. Uma forma de tombar de sono para que me apareças desse lado, no ósculo dos óculos sobre o livro gasto, a auscultar este outro sonâmbulo para a tua conta, com o desejo de aportar (muito breve, sem demoras, dizias) no cabo onde as tuas amarras se enovelaram pela última vez – foi o que confessaste, à minha partida, e quando ainda te oferecia boleia para o sol.
Nesse teu último porto, granito já sei que terei sempre. Só tenho de levar a receita da broa para que o milho não sirva apenas para as fermentações com que todos, à tua volta, festejam o outubro em festa quente. Contudo, dava-te um outro nome, a confirmar a estrangeira que sempre serás nesse desolo de terra que queres agora como tua: Mariana. É que só Camilo (esquece Broch) pode dizer tanto de ti como eu não sei, dando-te as graças de um nome assim.

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