não digas
Não digas que vais embora assim, a despedires-te à porta, abrindo uma ferida na casa com a luz da tarde intrometida nas minhas sombras. Não saberei render-te, o crepúsculo virá indiferente e a porta uma dor negra habitada por fantasmas mesquinhos, comigo numa espera imbecil de chinelo nos pés e tronco nu, afunilado no sofá, enquanto a lua for subindo, nada lhe interessando se foste, se ficaste, e se eu.
Vai haver vestígios de qualquer coisa de ti na televisão, e eu acobardado fugindo à tempestade emocional gerando remoinhos no meu peito, eu todo teso a dizer-me: aguenta-te!, olhando para as pessoas desfilando no ecrã. Vai haver vestígios de qualquer coisa de ti também na rádio, quando cansado estiver do sofá e for abrir a cama fria da tua ausência, ronronando música e vozes que não saberei escutar, eu num esforço todo tremeliques, a convencer-me: não é nada vais ver que ela ainda volta, está aí não tarda, já se ouvem os passos dela, sossega.
E nada, sei que não serão os teus passos que se escutarão além da porta escancarada de medo, ferida que dói e a qual não saberei tratar, por mais ansiolíticos que tome para mitigar o pânico. Vou acordar numa manhã estéril de sentido. Ligar-me-ão os colegas lá do escritório preocupados: então não vieste trabalhar, estás doente?, e eu apenas: é a porta que permanece aberta, e eles, coitados, sem entender patavina, desligando o telefone e comentado em sussurros: passou-se este, agora que temos aí os japoneses a chegar para fecharmos o negócio.
Não digas que vais embora, fecha a porta e abraça-me. Não foi nada, vais ver. Tudo continua como antes, podemos assistir aos concursos da televisão divertidos com os disparates das pessoas muito nervosas a responder e depois, quando o sofá se cansar de nós, abrimos a cama e aquecemo-la com os nossos braços, as nossas pernas, as bocas e os hálitos, e adormecemos com a música ronronando baladas noite fora na rádio. Amanhã fecho os negócios com os japoneses, vais ver, tudo na mesma, e nem vou sequer precisar dos ansiolíticos, não há pânico nem nada dói. Basta apenas que feches essa porta depressa. Depressa, depressa, agora, por favor.
Não quero acordar amanhã com a vida a doer-me em cima, saber-me sozinho e que daí em diante correrei mundo a mendigar rostos, ombros e colos para cá virem a casa, munidos de uma ciência de peritos, a verificar o que diabo terá a porta para me magoar assim tanto.
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foto de Olga Bragida
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