diz-me só
Diz-me se as montanhas são os céus virados do avesso, se outonais oliveiras frutam os migrados olhos teus, se chover agora são lágrimas a mais. Que árvores por coração ferido, e onde estão os canaviais. Se as veias um açúcar da cama, dos beijos e dos corpos atingidos pela porcelana da nívea madrugada de Eugénio, cedida a toda uma cidade, adentrando. Se é além o ribeiro corrido de um corpo para a tentação da cauda. Diz-me se há gatos escondidos entre as nuvens sucedendo temporais. Que aves migram e dormem, diz-me delas, e quais os ares com que sonham: se não são então gaivotas no cais estraçalhando pedaços de peixe. Diz-me do mar, como ondulam as águas, as tormentas em espirais. Diz-me do abalo da terra queimada, que o povo suspenso em suas aldeias polvilhando a serra, nunca esquecerá. Diz-me que não sonho, ou então sim, que afinal as açucenas ainda esperam as rãs nas suas vãs conversas de charco. Que há redempção para as linhas escritas, tantas vezes proferida foi a idade limite das palavras, e que erro pode haver em palavras assim tão velhas. E, a propósito, ¿qual o motivo para a mão se enviesar do papel, segurando a tremura da caligrafia? Diz-me, então, ¿porque é que, afinal, concentrado o amor, a voz da tinta acabou por indagar sobre nada que quisesses responder? ¿Entendes o nojo por tudo, meia falange quebrada pela insustentabilidade do dedo que tudo quer fazer e tudo acidenta? Há aromas no copo, cheira. Diz-me: ¿bebes da minha poção, ou rejeitas a mínima porção? ¿O que faz um coração no céu, quando há céu sobre tão variada oração? ¿Que conquista tem a pequena folha da hortelã no gelo, rebentadas as nuvens sobre planícies, esses céus que são montanhas viradas por migração das estações ao avesso? Sabes que chover são árvores nuas resistindo? ¿E que a migração das aves significa o ditame da solidão? Que são mesquinhas as gaivotas confundindo o fresco peixe com os detritos do lixo? ¿E que são essas mesmas gaivotas que gritam uma alvorada que os galos jamais compreenderão? ¿Que há beijos como o nano-espinho das urtigas, mãos que não se enxerguem uma à outra como a eugénica porcelana do rio desfazendo os sonhos? Afinal, o que faz a tentação? – um sôfrego polvo suspenso, encalhado sobre a areia. Diz-me onde foi que a falange sucumbiu, ¿que argila para lhe devolver a forma do prumo? ¿Terá sido essa a razão com que a serra sucumbiu ao fogo – falange acidental de deus – e por isso tive esta minha mão, dorida em letras esqueléticas, desviando-se em contrário norte-sul de uma bússola perdida do seu magnetismo? Diz-me. Diz-me só. E ainda que me reste sem mais ninguém, garante-me, porém, que sempre estou contigo. A não ser que, lá aqueles lobos, em alcateias longínquas de neve, saibam de uma razão não declarada, e façam voz por ti.
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foto de Michael Schlegel

 
 
 
 
 
 
 
 
 
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