ascensão da morte



E porque deixaste correr as lágrimas, a fadiga veio sobranceira ao teu corpo jovem para te tragar, e vais adormecendo num abandono imerecido. Inquieta-te a vigília com os seus fragmentos de sonhos malogrados em pesadelos, mas nada agora que impeça de mergulhares num sono profundo, tal é o teu cansaço por lutares contra o que não sabes, nem como. A morte foi um choque. Continuará sendo sempre, para quem não a espera, principalmente para nós. Somos mortais, sim, e com essa terrível consciência de que o somos e que tentamos esconder, fazer de conta que não existe, fingir que será daqui a muito tempo. Para nós e para quem queremos bem. E essa morte, nunca premeditada, chegou à tua porta. Até porque, tudo no dia era apenas a rotina acontecendo. Ficaste a estrebuchar nesse sofá a que te rendeste, com o lenço enrodilhado nos nós dos dedos de tanto morderes a dor. Uma nesga de sol procurou-te no espaço entre os móveis, sacudida por uma cortina ténue de pó. Foi recolhendo devagarinho à paciência da janela numa descida de sombras disformes, acabando num silêncio de relógio de parede, tique-taques acrescentando tempo a nadas, abstracções da ausência que sentes, e que sabes ser absolutamente irreversível. O teu corpo jovem adormecido no colo do sofá, indefeso e em posição fetal. O teu rosto, envelhecido em poucas horas do que era esperado em anos, sulcado pelo sal das lágrimas evaporadas. Ficaste órfã dos beijos, dos olhos e dos ombros, e dos abraços que sempre tiveste mal nascia a manhã e quando se rendia o dia para a noite. Doi tanto por saberes nunca mais os verás, tocarás, sentirás. Protege-te apenas a sombra, engolindo os ângulos das paredes, velando-te com um sussurro de preces. Dormes dorida com a morte ao teu redor, e o mundo prosseguindo. Como pode ser assim grotesco; como se atreve o mundo prosseguir, desleal por ficar tão indiferente a este teu sofrimento? Ninguém devia de ser capaz de avançar com a sua vida, ninguém! O tempo parou, ele morreu! Esperar-te-ão os escombros quando pressentires o rendilhar espantoso da manhã. Então, vais morder as aparências, todos terão os olhos postos em ti, enlutada, todos te mirarão com dó, porque és a vítima indirecta daquela tamanha tragédia. O dó, as condolências dos outros que só assistiram a tanta miséria. A raiva que terás disso, receando de te esqueceres da solenidade e do protocolo, da moral humana, da contrição. E um medo ainda maior de reveres onde tudo aconteceu. Por fim, o desconsolo. Porque agora és tu, que nunca pensaste nisso – tinhas sido uma outra entre demais, que apenas observava também os enlutados alheios – o desconsolo por testemunhares com a tua dor de que a vida é nada, a vida não vale mesmo nada.


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foto de Nuno Fox (Expresso), editada

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