as últimas cerejas

Sobraram do meu braço, ramo estendido a fugir do vil agosto, estas cerejas. Toma-as, que já vai tão longe o borralho abençoado de maio. Adora-as, no seu ramalhete, como o povo mirrado adora aquela santa predilecta. Foi assim que as fiz, gordas aos olhos, sabendo que virias. É a tua última fome, a tua derradeira gula. E o teu primeiro desmaio antes do equinócio descendente.

Trinca cada uma com segura delicadeza. Por forma a que o suco te escorra pelos lábios até ao queixo e pingue, lentamente, sobre o teu peito, manchando de sangue a pálida pele dos teus púberes seios. Para que, depois dessa primeira mancha, possas ver com os teus olhos bem abertos o que te cerca de bom e de mal.

Come-as, uma a uma, mastigando um segredo que todos sempre conheceram e ninguém jamais se atreveu a revelar por puro egoísmo. Engole-as, finalmente. O sabor que restará delas em tua boca será a única memória, no dia certo e a ti prometido, para saberes volver aos meus ramos, os braços que te protegem. Nesse dia que virá, em que deixarás a puberdade e fixarás os olhos no azul redondo do céu enquanto te inseminarei, ensinando-te a semente imaculada da prole humana, antes que se extinga.

Por sacrifício, serás então depois a hera por um longo inverno que acrescentará depois à primavera todo um renovado verão descansado sob as sombras frescas dos velhos carvalhos. E o nosso rebento mondará, quando os seus músculos se ocuparem de vigor, a terra onde crescerão as searas do pão, por tantos séculos ansiado.

Cuidado, porém: não te deixes destruir pelo minúsculo caroço. O mundo de tal catástrofe não estará, nunca, preparado. E se perdida fores, sucumbirá tudo o que disserem: que fiz em seis longos dias, esse milenar momento de morte entre manhã e tarde.


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foto de Sergey Litovkin

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