Ela subiu os estores, correu a janela, e deixou o ameno vento bulir as cortinas, de mansinho, como se fosse forte brisa em alto-mar sobre as velas de um veleiro que há muito estava entregue à maré e suas ondas, esperando essa bolina para que pusesse a embarcação seguir uma qualquer rota. Ela não sabia, nem podia saber, que rota seria. Nas veias dos seus braços por tanto tempo maltratados, como poderia encontrar qualquer estrada, rua ou singular caminho onde arriscasse, e lhe fosse possível aventurar-se a caminhar, a chegar a algum sítio, a chegar a alguém? Todavia, apenas pôde abrir a janela, e sentir o ar.
O logradouro, que fazia um círculo imperfeito por toda a casa, era um imenso jardim, com recantos de todas as cores e condições. A oeste, atrás da piscina e com toda a vasta paisagem tão próxima do mar, erguiam-se os pequenos e médios cactos floridos, entre os grandes e grossos braços de aloé, qualquer um cada vez mais convencido da sua magnitude desde que conseguiram medrar naquela terra a norte, onde reinavam, nos montes longe, a carquejeira e a giesta. A sul, o jardim avantajara-se da silvestre natura, com pequenos lírios e imperiais papoilas, crescendo entre o tomilho, dente-de-leão, malva, singulares apontamentos de salsa e cebolinho, açafrão, trevos, e outras ervas imitando. A este, um roseiral com a mais formosa rosa vermelha até às de santa-teresinha, também hidranjas enormes. A norte e a este, entrelaçadas pelos muros da casa, cresciam muitas trepadeiras, olhando de cima os canteiros de cravos e de amores-perfeitos, de margaridas e de brincos-de-princesa, entre tantas outras flores de perfume intenso.
No interior da casa, tudo era sóbrio. Qualquer divisão, por mais pequena que fosse, tinha uma janela, senão grandes vidraças, como montra para fora. Os móveis, qualquer que fosse o ambiente e utilidade, tinham a mesma génese, na construção, na planificação, pelo que quem quer que visitasse a casa, deslumbraria um sossego muito acolhedor e pleno de conforto. Porém, as pessoas que habitavam aquela casa e podiam desfrutar de tal logradouro, não coincidiam com a sobriedade interior ou o eclético florido exterior da casa. Nada tinham de sóbrio ou florido, tão pouco eram pessoas nobres. Ou adequadas. Pessoas incapazes de borratar um papel, pessoas incapazes de, por tão raras ocasiões em suas vidas, celebrar. Aliás, e perante tais cenários descritos, era gente que ali não sabia permanecer, nem sequer pertencer. Pessoas que ali entravam e dali saíam, sem pretextos de pressa ou qualquer outra coisa que justificasse a sua indiferença perante o lugar.
Quando ela subiu os estores, e correu a janela, e deixou que o ameno vento pudesse bulir as cortinas, sabia bem que não manejaria leme ou vela, fosse para puro recreio, fosse para exausta salvação. Porque confirmava não saber que rota, sequer destino, para onde levar uma nave assim tão pesada, com uma casa por ela idealizada, mais os jardins que em volta dela soube plantar e acompanhar, desenvolver. Foi um dia em que quis perecer e não parecer. Não lhe parecia a ela que, quem movimentasse as portas e sujasse os tapetes dos corredores, da pequena, mas larga escadaria que subia aos quartos e às suas intimidades, pudesse perceber o seu esforço. E nunca conseguira uma união das salas: naquela onde se serviam as mais sublimes refeições, nem nessoutra, onde se serviam canapés e aperitivos, também longos jogos de sorte, fumos de nobres tabacos entre cafés, licores e outros digestivos.
Assim que conseguiu despertar do tremelique das suas pestanas, sabia que estava só. E estava desamparada, como sempre esteve, antes e quando da véspera, como em outras ocasiões, tivesse conseguido receber e ver gente tão deslumbrante, supostamente alegre, tilintando copos, invadindo os jardins da rosa dos ventos com as suas lamúrias e as suas luxúrias, amolgando serventes com o mais vil disparate, gente amolgada pelas sujas serpentes, gente que anunciava, enunciava e denunciava, nos seus trejeitos em câmara-lenta, a inumana gente que sempre fora. Ácidos verdumes caídos no chão ou nos tapetes, o vómito a dar de veneno à compostagem entre as veredas das trepadeiras enojadas de tais investiduras. E secavam os relógios a não-se-sabe-quantas-horas eram, quando do último vermute & gin e da cama de cetim a colher os pesados elos que as levavam a quem as pudesse (imaginação sua) julgar o que seriam de amigos, família… enfim: de gente sua congénere.
Naquela manhã, já tarde precoce, percebeu um gato, passando ao lado, quando a hora real fez luz no seu quarto a bater muito mais que das seis da tarde. Ela, com um apetite de pequeno-almoço que desejava saciar, verificou, de robe meio medido sobre o seu corpo, no corredor dos quartos de dormir no andar de cima da casa: o gato vinha do tardio oeste, selvagem como os cactos e o mar enchendo: procurava, por fome, onde fuçar e comer. Então desceu, vendo e perseguindo a cauda negra do gato intruso – naquela casa que nunca teve animais domésticos, senão as mesmas moscas e sua prole – e o descobriu, entusiasmado, nos seus dentes, sobre os restos de sabe-lá-o-de-quando, conseguindo uma inequívoca felicidade… ou saciedade.
Projectou-se naquele faminto gato, que lhe parecera um intruso de fome, quão era ela de amor, e desarrumou as estantes dos armários da cozinha, e no frigorífico fez o mesmo, por apetite dela e fome daquele, em cru, ambos com os seus dentes penetrando a carne ainda congelada do que havia naquela casa, com ventas para o mar. As ventas, sim. Pois que se imaginou depois como um cavalo – aquele que nunca teve e desejou – a fungar descontente daqueles cactos espinhosos a oeste e, cismada ou montada sobre tal dorso (sem reconhecer se era este o de um felino ou o de um equídeo bravo, ambos abatidos ou provocados pelo seu peso), que a levaria, com toda a certeza, para fora dali qualquer que fosse a direcção da rosa dos ventos.
Porque, apesar de receber gente tão diferente, quão diferente o seu jardim ao jeito de rosa dos ventos, ela acaba sempre só: quem vem, vem por si, não por ela. Pessoas que conversam, discutem, até se zangam; senão o contrário: quanta vezes viu sinais de apressado amor num dos seus quartos? Ela recebe, mas ninguém a percebe. Ninguém a recebe quando à sua casa vão, entusiasmados com a socialização, esquecendo a cicerone. Essa, ela, que se levanta todos os dias, sobe os estores, corre a janela, e deixa o ameno vento bulir as cortinas. Está sempre só. E por isso não sabe. Não sabe se há-de desligar-se destes momentos sociais com que ela pretendia conectar-se com o resto do mundo, e que mundo tão pequeno. Ou, se apenas dá aos ombros e deixa que tudo corra de feição.
Afirmam os seus mais próximos – outra gente a quem ela foi ignorando – que tudo é mentira, filtro. Invenção de quem é doente sem maleita física. Maltratados os braços por se julgar ela sua própria heroína. Tanto que ela quis ter e acabou perdendo o que nunca teve. Perdeu-se, portanto, na sua concepção de si, e de si perante o mundo. E adiantam esses mais próximos: a casa onde ela vive tem de facto um cata-vento, é um exagero chamar-lhe rosa dos ventos. Um apartamento em rés-do-chão de um prédio com quatro andares, velho, sem ter sequer um elevador. E o cata-vento lá está, de hélices coloridas no varandim que há depois da janela do seu quarto com quatro metros quadrados. Quarto que partilhava, há dez anos, com um indivíduo que desapareceu. O mesmo indivíduo que a convenceu que esta gente próxima só lhe tinha inveja. E que lhe prometeu ainda um outro mundo nas suas veias.
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nota sobre este texto por
Maria Clara Resende
Quando José Alexandre Ramos (JAR) me remeteu a versão final desta “crónica”, escrita em 2023, para análise, desejei que fosse imediatamente recuperada para ser lida com o cuidado e o rigor que merece. Não por uma qualquer tendência revisionista, mas porque nela encontramos uma forma de escrita que se compromete — formal, estética e emocionalmente — com a difícil tarefa de encenar a alienação humana sem a desumanizar. Não sei quando o autor decidirá recuperá-la, mas as minhas palavras sobre este texto servirão qualquer que seja a ocasião.
“rosa dos ventos” é, por direito próprio, uma crónica — mas é-o naquela acepção cada vez mais rara da palavra: não como relato factual ou impressões ligeiras, mas como escrita da condição humana, num tempo dilatado pela memória e torcido pela imaginação. O autor recupera o fôlego lírico da crónica e fá-lo sem hesitação: o texto respira como um longo parágrafo interior, carregado de imagens, de ritmo, e de uma cadência que mais lembra a da música do que a da prosa comum.
A personagem central desta narrativa — uma mulher toxicodependente que, nas suas viagens interiores, se vê proprietária de uma casa imaginada, recebendo visitas que nunca se demoram por ela — permite ao autor interrogar a tensão entre o que se tem e o que se imagina. Mas mais do que isso: permite-lhe uma exploração clara do modo como a alienação se infiltra na percepção, seja ela provocada por substâncias, seja pela nostalgia induzida pelas redes sociais, onde todos editamos o mundo para suportarmos o dia. Neste sentido, o texto aponta sem o dizer: quantos de nós não vivem já nessa versão narcotizada da realidade?
JAR mantém a sua linha autoral clara: quase sempre, os seus textos encenam com mestria o gesto da construção — um cenário exuberante, um mundo sensível, um espaço estético ou simbólico — para depois o desfazer subtilmente, revelando que o que lemos é apenas projecção, ilusão, desejo ou ruína. Essa marca é sua e volta a ser aplicada com precisão neste texto, onde o leitor é lentamente conduzido de um paraíso sensorial a uma varanda pequena com um cata-vento de plástico colorido. O gesto não é de denúncia nem de escárnio: é de reconhecimento. E é, por isso, comovente.
É também significativo observar que esta crónica poderia ter sido, com igual eficácia, um dos longos e ácidos poemas do autor, como «a nodosa e ácida crosta dos dejectos» ou «o evangelho segundo este poema». No primeiro, o caos humano apresenta-se em carne viva; no segundo, deambula-se no caos delicado entre o efémero e Deus, como se a fé fosse apenas mais uma invenção para suportar o absurdo. Em «rosa dos ventos», JAR não muda de território: continua a escrever nesse espaço onde a imaginação é tanto um consolo como um castigo, e onde a beleza serve para escorar a verdade — mesmo que essa verdade seja inventada.
Por fim, importa sublinhar o cuidado da escrita: há um rigor na construção das imagens, uma persistência na metáfora e uma confiança dirigida ao leitor. O texto não se esgota na personagem; não a explica, não a redime nem a julga. Limita-se a segui-la, a ouvir-lhe o delírio, e a reconhecer nesse delírio uma forma legítima — e literária — de estar no mundo.
É esse reconhecimento que torna este texto tão necessário: porque nele vemos que não há apenas fuga, mas também gesto de criação. E talvez, por momentos, mesmo que só por instantes, a criação nos redima de não termos sabido viver. Espero voltar em breve a ler este texto em «a justa geografia».
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