outra crónica de domingo
Mais logo irás perder o enésimo episódio da série que segues na tv, de tão sonolenta que estás, à procura de um lugar mais fresco para entrares naquela já habitual modorra de domingo. Sempre dormiste a sesta a qualquer hora da tarde para te revigorares ao serão, frente ao ecrã, mastigando frutos secos ou a apetitosa batata-frita-de-pacote entre grandes goles de refrigerante com cafeína
(e o teu corpo condizendo: as ancas mais largas do que era suposto, as coxas desenvolvendo a celulite que antes te orgulhavas de não ter, as pequenas mamas discordando do crescimento ao largo daquelas pregas-pneus logo abaixo do peito, tão visíveis nos flancos, a barriga maior não por sinal de uma gravidez que nunca conheceste),
e, contudo, nenhum lugar fresco onde sossegares, nessa velha casa herdada dos teus pais que, após a partida quase simultânea de ambos, é onde tens vivido, sem planos de mudança, porque é onde vivem as tuas recordações, porque é ainda a tua casa, apesar do senhorio e essas arrelias todas.
- Não é já tempo de mudares?
disse uma dessas tuas amigas com que te encontras, cada vez mais casualmente, cujas entrelinhas te encostaram à parede, entre espada acusatória augurando o pior, que a mudar não é só de casa, mas de hábitos, de rotinas, e… da solidão. Uma solidão auto-imposta; só vês pessoas no trabalho, excepto por uma ou outra ocasião em que te ligam e quase te obrigam a sair de casa após o jantar para um copo no café da esquina.
Observas, com o olhar tolhido que concedes ao calor que se faz, a garrafa quase vazia de vodka. Sem perceberes
- Porra!, foi comprada ontem e já está tão vazia?
como, numa tarde, se foi diluindo na mistura concentrada dos sumos de laranja, kiwi, mais folhas de menta e gelo triturado, que sempre é melhor que o refrigerante, engorda menos e até desintoxica
(tu, logo pela manhã de domingo, dando às nádegas apertadas pelas leggings, entre as esbeltas atletas a quem olhas de soslaio no passadiço à beira-rio, ofegando ao fim de dois quilómetros
- O melhor é voltar para trás agora
chegando ao carro enrubescida e encharcada de suor),
mas apenas finges que não percebes, sabes como a vodka te desinibe, e acabas por fazeres stories no instagram com selfies no ângulo certo, pensando no alvo masculino com a afirmação destacada de que qualquer homem a sério aprecia uma mulher madura, 40 anos feitos, e com todas as curvas.
Dois dias depois arrependes-te, perante a meia-dúzia de críticas das pessoas mais próximas de ti, em contradição com os imensos likes masculinos, que não devias fazer isso, porque te expões tanto, que qualquer dia tens um grunho à porta e etc. Mas chega a sexta-feira, com a promessa de mais um fim de semana em que
- Este é que vai ser!
esperas fazer tudo e mais alguma coisa. Porém, acabas por repetir o mesmo de sempre. E hoje não fugiu a essoutra rotina fora da rotina de trabalho da semana. É a tua rotina dos fins de semana. As rotinas sempre te deram segurança. Cansaço também, mas principalmente segurança: só contas com o que tens, com o que és. Sem dares conta que, a cada dia, vais deixando de ser quem já foste. Por isso tens evitado os espelhos. E hoje, com tanto sono que tens, nem café nem refrigerantes. Faz calor. Vais adormecer.
Amanhã, aquela dor de cabeça enquanto dás um jeito ao sofá desarrumado, porque à cama falhaste outra vez. A rotina. O tal doloroso começo de uma nova semana, que as segundas-feiras são terríveis para toda a gente. Amanhã, aquela voz ao telefone, pela hora do almoço, que te irá perguntar, já com as entrelinhas poluídas de sarcasmo e crítica:
- Então, como foi esse fim de semana? Viste a série ontem?
e tu danada, não vais querer confessar que terás mais logo que ver na box o episódio do dia anterior, mais danada porque uma costura do vestido cedeu, como a garrafa de vodka em dois dias cedeu ao vazio. E quando chegar a sexta-feira seguinte, continuarás a tua rotina, sem te danares o quanto o teu corpo cede, cansado, ao vício e à tua falta de amor-próprio.
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foto de Doug DuBois
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