polonesa póstuma
Aquele tempero entre o ácido do limão e as lágrimas que uma malagueta solta: é o que falta aos nossos corpos, quando estranhamente nos damos numa complicada polonesa que Chopin compôs em horas da morte. Excito-me com o volume dos teus seios, tu com a barriga tacteada pelos meus dedos, ambos redescobrindo a floresta da intimidade que ao centro nos faz farejar de sede. Todavia, bastando pouco para que eu, esforçando suculento fruto, possa exibir o mínimo da minha virilidade; e tu, em crescente secura, a receber-me com um cada vez maior incómodo.
Já sei: quedamo-nos na rotina. Os dias foram acumulando o nosso cansaço. E as noites, para casais como nós, já pouco mais significam senão repouso e dormir. Então, o desejo carnal passou a ser apenas uma vontade unilateral, com um de nós com uma gana aflitiva e passageira, enquanto o outro exercendo o ofício marital: o de simplesmente receber e/ou o de simplesmente dar. A sociedade criou expertos para situações como a nossa. Foram considerados terapeutas, e os seus consultórios são um ambiente mais terno e cómodo do que o jeito antigo dos confessionários dos padres nos intervalos das celebrações. Surgiram nichos de negócio, pois que tudo se paga neste mundo.
Paga-se a tentativa de ser feliz. A tentativa. A tentativa de ajuda, paga-se. Tudo se paga para que, afinal, tudo se eximir: há bolor acumulado no limão, as malaguetas murcham e tudo se perde muito devagar: o efeito e a consequência. Onde há mais mundo? Nas coisas que até aqui tinham menos importância ou, tragicamente, na resignação? Uma tragédia que aguarda uma qualquer morte efectiva para ser pródiga de um conto de amor que não chegou ao seu final feliz de para sempre?
Sortilégio a sorte dos lugares-comuns. Fosse eu crente fervoroso nas questões semânticas da humanidade, até diria: Blasfémia!, rasgando as minhas vestes. Desconfio, porém, que, se eu de vestes rasgadas perante ti, algo parecido me dirias, variavelmente:
- Não tens frio? Cobre-te!
- Guarda isso!
- Olha os miúdos!...
quando já o frio é a temperatura de todos os dias, mesmo nos mais quentes; que nada se guarda o que não oferece ameaça, temor, fome ou vergonha
(a vergonha, talvez);
e os miúdos já nem sequer habitam esta casa.
Está bem: eu prometo. Prometo que amanhã, logo cedo, limparei as teias e as aranhas que as teceram, lá no tecto, aquele céu branco para onde outrora olhávamos em êxtase, a reclamar qualquer relíquia divina. E Chopin realmente morreu, após compor certas polonesas que ficaram por acertar.
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(foto de autor desconhecido)
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