o motivo
Deixo a esferográfica deslizar sob a minha mão direita para te escrever algumas palavras. E acendo um cigarro porque as palavras, etéreas, não se materializam, e por cada fumaça que puxo do cigarro é como se quisesse arrancar a palavra certa, a frase mais coerente, o parágrafo perfeito, para te dizer qualquer coisa como
- Gosto de ti
no entanto, este
- Gosto de ti
é tão pouco para o que há para dizer, e talvez seja por isso que em vez de discorrer no papel ou dizer-to nos olhos, fico sem nada dizer de uma forma ou doutra. Nada feito. Nada escrito. Talvez.
Queimou-se o cigarro morto entre o indicador e o médio da mão esquerda, esmago a ponta no cinzeiro, e é então que sinto que os meus lábios tremem. Escondem um soluço, tremendo, e é nos lábios que nasce a torrente de espasmo que forçadamente quer percorrer todo o meu corpo, sacudindo-o. Num pranto envergonhado. Tremendo os lábios, porque não sabem se dizer
- Gosto de ti
será suficiente para que tu e eu própria entendamos o que há realmente entre nós, para lá do teu olhar de esguelha, por cima do tablet, e os gestos do meu embaraço pairando no silêncio da distância que nos desune.
Nada fazes. Perdes-te tocando o pequeno ecrã nas páginas desportivas desde que chegaste, trazendo um caixa de pasteis em miniatura, deixando-a em cima da pequena mesa da sala de estar sem dizer palavra, como se os pasteis – com certeza os últimos da padaria – fossem, para ti, de algum modo, e à tua maneira, um
- Gosto de ti
imaginando-me perdida de gula entre o creme de ovo já duvidoso e lâminas de chocolate desfeitas no fundo da caixa, mas, sabes, por mais que me esforce, não é
- Gosto de ti
que ouço no mais íntimo de mim. Acentua-se, na maneira como rolas os dedos sobre o tablet, e no silêncio dos teus lábios herméticos, a distância que nos separa.
Sirvo-me de mais uma chávena de café, bebo-o sofregamente como se fosse um elixir qualquer que volvesse o tempo, os objectos, para que nada disto fosse assim. Acto contínuo, acendo um novo cigarro, mas o fumo repetido a esta hora da tarde, sem ter ainda jantado, pesa-me demasiado nos pulmões, pelo que duas ou três fumaças depois já o estou a esmagar no cinzeiro de vidro.
Olho para ti e quero que olhes para mim. Mas é para o tablet que tu queres olhar. Estás num espaço onde me tens barrada a entrada. Se vou ter contigo,
(como se tocar-te fosse uma espécie de murmúrio aos teus ouvidos
- Gosto de ti)
já sei que vais dizer que queres que te deixe em paz, que estás a ler as últimas e detestas ser interrompido, que vá passear o cão, ver se o periquito tem água e sementes, se há alguma roupa para dobrar, se o jantar já está adiantado, se o lixo está no contentor.
Assim tem sido há trinta anos. Sem filhos que os recusaste porque não és capaz, sem amigas ou amigos que me venham visitar por gosto e propósito, não aqueles que trazes de vez em quando para jantar, mas amigos meus verdadeiros, que me façam distrair daquilo que eu sou, daquilo em que me conformei ser – a tua mulher – como se o facto de ser a tua mulher,
(tua de papel e aliança abençoada pelo deus que acreditas e que pensas ajudar o teu clube nas noites em que joga com outro clube a partida do futebol que assistes refugiado com os teus amigos e comparsas pela televisão com cabo no café mais adiante),
significasse ter de servir-te, existir para servir-te.
Maquilho-me, componho a roupa, uso os perfumes que me ofereces em todos os meus aniversários que celebrei a teu lado na mesma atitude
- Gosto de ti
para que me olhes, apesar de saber que muitas das vezes te interrogas, desconfiado, porque me maquilho e visto assim, e que sintas que a minha presença não é uma tua necessidade pontual, mas a mulher que escolheste para viver contigo e com quem devias partilhar todos os momentos.
Tudo em vão. A luz do pequeno ecrã com o ruído amarrotado que sai dele invade o silêncio que, afinal, não preenche a casa. No sofá estás tu e o teu mundo. Eu sou mais uma peça de bibelot arrumada no pó do esquecimento.
Porque será que não estou bem, passados estes trinta anos em que afinal outro homem não revelaste ser senão este mesmo, tu mesmo, que estás enterrado desde que nos casamos nesse sofá lendo as páginas desportivas num tablet, e que me olha de soslaio como se ordenasses
- Não incomodes!
rolando os dedos como um revoar de pássaros espantados nas tuas mãos? Porque será?
Infelizmente já sei o porquê, mas nem o deves imaginar. É pelo mesmo motivo que voltei a fumar, deixando-te surpreso quando me viste há dias, novamente com o vício a soprar pelos meus lábios, sempre impecavelmente pintados para ti. E tu pouco te importaste, disseste que a saúde era minha, ao passo que tu fumas mais do que eu, e daí fazes pretexto para voltares a inundar a sala, o quarto, a casa de banho com o cheiro pestilento do fumo excessivo que carregas.
O motivo. Das minhas mais recentes insónias e das minhas mais recentes fingidas dores de cabeça que te irritam e desiludem, nas parcas vezes que me procuras para outro fim que não seja dar-te de comer, dar-te de vestir, dar-te o conforto de uma casa composta. O motivo dos meus olhos borratados do rímel, o motivo de, ao fim destes anos todos, esperar-te na sala de estar, embrulhada numa manta, até altas horas da madrugada, quando dizes que é o trabalho, são os clientes, é o patrão.
O motivo encontrei-o com a mesma dedicação que sempre tive ao tratar da tua roupa suja, como de costume despojada no chão do quarto ou da casa de banho, após uma noite em que estiveste longe, porque o trabalho, dizias tu, porque os clientes, porque o patrão. Terá sido um dos teus clientes, o teu patrão quiçá, ou outro alguém do teu tão cansativo trabalho que terá deixado dentro de um dos teus bolsos um pedaço de um guardanapo de papel, rabiscado de alguns gatafunhos que não soube entender, mas onde se via nitidamente a viva flor da tinta que exibia um
- Gosto de ti?
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(foto de autor desconhecido)
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