o eterno lugar-comum do efémero


Contigo a contar as horas, depois das horas os minutos que sobejam no tempo a dilatar-se nos nossos gestos tentando fazê-lo render e tudo, porém, acontece ao contrário quando dos preliminares ao êxtase

(poemas lidos, dois copos de vinho cúmplices, o tremelique dos olhares quando o silêncio em vez de nós, incendiando-nos de desejo)

e do êxtase à morna massagem dos corpos com picos de ternura nos sorrisos cúmplices do mesmo silencio já não incendiado. A janela apagando devagarinho com movimentos de sombra e luz alternadas consoante a passagem do sol rente à altitude dos prédios e dos pinheiros que o vão eclipsando, o sol por sua vez a seguir o ponteiro grande do relógio da natureza guardando-se da noite, a recolher-se para lá do horizonte.

Percebemos então o quão efémeras foram as três horas em que nos demos, um dos copos de vinho tombado pela ansiedade da roupa que despimos com o silêncio em chamas, o vinho escorreu a tingir o tapete

(perpetuando o efémero com a sua nódoa cor de rubi)

e o cheiro adocicado foi-se evaporando à medida que a temperatura dos nossos corpos em chamas, com faúlhas disparando dos sentidos, depois brasas e por fim um borralho de ternura a convidar ao sono dos corpos repousados.

Vai nascendo então uma leve angústia em mim pela ansiedade de o tempo ignorar desejos de eternidade, ignorando o desejo que as três horas voltassem ao ponto zero e recomeçassem, as mesmas horas numa continuidade para lá das leis físicas, um nunca acabar enquanto a nossa vontade permitisse repetir.

Não vou voltar a escrever a mesma ladainha de sempre, estou cansado disso, a dizer que com o descer da noite um do outro nos apartamos, é sempre assim: surge a penumbra e o mundo a dizer-me que se acaba, como se o amanhã

(segunda-feira em que cada três dos seus minutos maiores que as nossas três horas de hoje)

não pertencesse ao mesmo ritmo da vida que temos de levar até surgir outra oportunidade. Para quê esse fatalismo todo, feito de saudade antecipada, de lágrima ao canto do olho; para quê esta pieguice se amanhã

(uma noite de sono faz milagres)

- Bom dia!

e tudo retomando aos seus lugares?

Tenho esta doentia tendência para imaginar que o mundo finda quando o inverno traz a noite plena às seis horas da tarde e os domingos gotas de sangue em vão… Como deves perceber, já não estou a dizer coisa com coisa – que é isso de domingos gotas de sangue, por que me dói saber que o que me resta hoje é apenas o enquanto aqui estás, a ver-te abotoando a blusa, apertando a saia, retocando o batom, remexendo o cabelo enquanto procuras entre as sombras

- Onde estão os meus sapatos?

(eu nu, a espreitar debaixo da cama, por trás das cortinas, onde se terão metido os teus sapatos?, e é ridículo saber-me a eterno estes fugazes momentos de abstracção por adiarem a despedida)

e aí está o pé esquerdo, falta o direito, que vens a descobri-lo sob as minhas calças atiradas ao acaso na altura em que nem uma hora havia passado desde que o silêncio se imolou entre os poemas e os dois copos de vinho.

Decido-me pelo resto da garrafa ao ver-te piscando o olho a fazer durar a ternura, abres a porta discretamente com medo de despertares os fantasmas dentro de mim, uma nesga de luz que vem de fora sacode a penumbra do que fomos e, quando sais depois dela, eu finalmente sozinho pendurado no escuro, ainda a tentar fazer voltar os ponteiros dos relógios nos últimos goles do vinho que a partir de agora só me amargam a boca.


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foto de Vladimir Konkin

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