lâminas
There's a kid who had a big hallucination
making love to girls in magazines
Roger Waters, The Final Cut
Parecendo-lhe impossível continuar naquele despropósito de meses, implorou que o acudissem, vazio de tudo, no meio do quarto praticamente sem mobília
(ou seja: improviso de cama num colchão sobre o soalho com várias mantas e nesga de lençol puído e nodoso, uma pequena mesa equilibrada por um caco de tijolo a calçar-lhe um dos pés, uma robusta cadeira premiada no lixo, com as molas a espreitarem por baixo do estofo velho, e uns quantos pregos na parede descascada a dar um ar de cabide assimétrico).
Sempre olhou para elas na rua, quase encaixando os olhos no mesmo volume das algibeiras onde mantinha as mãos, de onde só as tirava para o esforço do trabalho, naquela oficina de línguas estrangeiras. De outra forma, sabia como observá-las com outros cuidados: umas vezes acomodado em segredo sobre o parapeito da única janela de um quarto no alto de um primeiro andar
(janela felizmente virada a nascente, tendo a avenida como a mais interessante paisagem),
outras, ou na maior parte das vezes, pelas revistas que colhia ou comprava, julgando-as mais perto do toque dos seus dedos por infantil alucinação.
Se, naquela circunstância, um grito do profundo da alma conseguiu atirar, as paredes, espantadas por tamanha surpresa, não lhe devolveram qualquer resultado. Em cima da mesa, ou nos recortes toscos colados na parede, elas fitavam-no, solenes de sorriso, provocantes na pose e com um inferno nos olhos que, para ele, embora ignorantíssimo das virtudes cristãs, era feito de verdadeira agonia, acutilante desespero, seguido de reprimível arrependimento.
Foi sempre uma alma só, silenciosa, apagada, presença despercebida ou ignorada, naquela cidade de betão para a qual foi chamado para que crescesse em mais e mais betão, articulações metálicas, gigantes espelhos azuis nas frontarias e janelas dos prédios. As mãos que o ajudavam a aliviar a razão de ter nascido na qualidade de homem, calejadas, eram as mesmas competentes no erguer de muros e torres. As mesmas mãos que, quando colocadas sobre o seu corpo suspeito pela meia-luz do quarto onde comia e dormia, lhe pareceram, tantas vezes, macias como as plumas das aves, e também ágeis, atrevidas e húmidas como a água precipitada das nuvens.
Rendeu-se, como em outras várias ocasiões, a uma convulsão
(digamos que atabalhoadamente controlada)
de choro e de braços em postura de abandono. Sentindo que essa coisa da solidão é muito mais negra do que encontrar-se um homem sem outra presença física e viva, humana ou não, entre quatro paredes. Sabia-lhe o contorno escuro e os membros em lâminas. A solidão, depreendia ele, fazia-se dos mesmos fantasmas da infância que, entretanto, também cresceram, não agora para inquietar o menino com medo do escuro, antes para fazer desesperar o homem receando a claridade.
Desarmado de defesas como vozes alheias num auxílio de dó, ou então de olhos, ou por mãos e braços de qualquer figura que pudesse resgatá-lo daquele sofrimento, fungou as lágrimas para dentro, secou a saliva desmaiada sobre os lábios e o queixo com as costas da mão e colocou os olhos sobre as fotos. Deu a mesma e já repetida, mas sempre especial, atenção àquelas jovens modelos, de mamilos espetados, a sombra peluda ou nua das suas púbis. Então quis ter os olhos delas nos dele, e percebeu
(lembrava-se de já ter percebido várias vezes antes)
o desequilíbrio da colocação dos lábios naqueles rostos de anjos pérfidos, ao mesmo tempo que lhes cavou, no brilho do papel sedoso por onde elas o olhavam e lhe falavam, o segredo prudente que pretendiam esconder entre a luxúria e a inocência aparentemente proporcionais. Ele disse para si próprio que entendia. E saiu do quarto, correu a escadaria para o bafiento corredor de entrada do prédio. Abriu o alto portão, encarou a ainda amena claridade do dia caído, e desceu para a avenida, convencido da sua epifania.
Menos de uma semana depois disto, uma das janelas do prédio em frente à do quarto que ele habitava, fazia sortidas iluminações emanadas pelo televisor que, entre outras grotescas manias do ser humano, noticiavam alarves do horrendo crime praticado precisamente naquele bairro.
«Homem de 28 anos terá violado cinco mulheres numa só noite, acabando por lhes arrancar os olhos. O suspeito, cujo nome não foi revelado, está a monte. Autoridades têm indícios que, porém, possa ter praticado suicídio devido aos elementos de pista que conseguiram…»
Alguém que ali morava terá talvez dado conta do frio ou por outras contas aqui ignoradas, e a janela, até ali cicerone, foi dramaticamente encerrada num estrondo de estores caídos. Quem soube de algo mais, jura que àquela janela ninguém mais ousou devolver-lhe a luz e o ruído da avenida.
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(imagem gerada por inteligência artificial)
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