espelho mágico


Tenho o cabelo ruivo, numa tonalidade clara, e a minha pele é branca. Algumas sardas no rosto. Muitas nas minhas costas, no meu pescoço, nos meus braços. Olhos cinzentos, ou verdes, consoante a luz. Nariz fino, pequeno. Os lábios, na sua cor rosada esbatida, recortam-se como a único traço colorido do meu rosto para além dos olhos. As minhas sobrancelhas e as pestanas são claras, quase se nem vêem. Quando sorrio, mostro a alvura dos meus dentes sãos e,

(o meu espelho não me diz se há alguém)

perante estes traços do meu rosto, podia dizer-me a mais bela, como uma branca de neve, embora não tenha os cabelos negros, nem negra é a sombra do meu púbis, antes uma carapinha rala de cor muito clara, quase albina, como se

(como se nunca tivesse chegado à puberdade)

e o meu espelho não me diz se há alguém

(alguém que, pelos meus olhos, cinzentos ou esverdeados, consoante a luz)

o meu espelho não me diz se há alguém mais feia do que eu.

Confesso que me abstrai o conceito de beleza, se existe um padrão para estabelecer que uma mulher é mais ou menos feia, é mais ou menos bela. Mas o que dizem, porque ouvi, é que sou uma mulher feia.

Há trinta e dois anos que sou assim, uma mulher ruiva e feia. E por isso talvez não seja mulher. Porque dizem

(ou dizem outros espelhos)

que as mulheres são o ser mais bonito à face da terra. Por elas os anjos caíram. Por elas os homens se perdem. Nenhum anjo caiu por mim, nenhum homem se perdeu por mim. Se anjos nunca vi, os homens estão longe da perdição por mim, uma vez que

- Olha a ruiva

ou

- Já viste aquela ruiva tão feia?

Passo indiferente, sou o reverso dos espelhos belos, sou a chacota das pernas roliças e dos bustos realçados, e sou entre os homens, apontando, galhofeiros

- Olha a ruiva

embora sendo eu para muitos a amiga eterna, a meiga amiga que lhes dá o ombro, nos momentos de amargura. A amiga ruiva. Ruiva e feia. Alguns dizem-me, quando pergunto

- Sou assim muito feia?

que a minha beleza é interior - um cliché tão gasto, tão batido –

(sou uma tecla batida)

e logo desviam a conversa no momento seguinte

(porque não terão o dom dos espelhos mágicos?)

continuando a desfiar os horrores e amarguras das suas vidas sentimentais, dos desgostos que as pernas roliças e os bustos realçados lhes infligem. E sinto que, apesar de atentarem nos meus conselhos

- Talvez devesses falar melhor com ela

(que são frases que se dizem, tão batidas quanto a beleza ser interior, clichés e teclas batidas)

sinto que o que mais os aflige é a dúvida de saber se a amiga ruiva feia continua disponível para despejarem como num vómito os sentimentos de tudo o que lhes rói na alma, e a mim

(branca, pura, virginal)

estala-me o desejo no sangue, e eles nem imaginam o fogo que se apossa do meu corpo quando se entregam chorosos de braços abertos como se vissem em mim a virgem Maria

(e Maria não é o meu nome, é

- Olha a ruiva

ou

- Já viste aquela ruiva feia?

por isso, a ruiva, a Ruiva Feia, sim, creio que é esse o meu nome, Ruiva Feia)

e eu querendo deixar de ser a virgem

(Maria, ou a virgem Feia Ruiva, a Ruiva feia e virgem)

com uma vontade enorme de lhes dizer para se borrifarem nas das pernas roliças e bustos realçados, e fazerem amor comigo, fazerem todo o amor que jamais fizeram com alguma mulher que se fite diariamente ao espelho e não saiba o que é ser branca, leitosa, sardenta, de cabelo em chamas, talvez das mesmas chamas que me cobrem de calor o corpo nas noites em que adormeço nas minhas fantasias e gozo na solidão e na sombra de um espelho que não sabe dizer-me

(porque não tem o dom dos espelhos mágicos?)

- Não há mulher mais feia do que tu.


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foto de Valerii Gorodnichev

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