como eu



Conversa de circunstância, qualquer que seja. Desperdiçar os dias assim não é meu desejo. Levantei cedo da cama, umas sete horas, para as lides domésticas. Deixei todas por acabar mal começou a primeira bátega do dia. A rua atapetada por um curso de água muito cheio de pressa para achar a sua foz. Por cima, a luz, sem ser luz concreta. Ou seja, uma abóbada cinzenta e lacrimosa como os rostos das viúvas vivendo em saudade.

Viúvas como eu.

Não quis envernizar as unhas, apenas as limpei do verniz antigo, descolorido da alegria que por longas horas, na véspera e na madrugada, senti. Era alguém que eu não sabia que pudesse existir, porém alguém que sabia quem eu era, como sofria, por que angústias havia passado. Era alguém que sabia das palavras como pautas, que as proferia cantando. Ou, pelas fotos que continuamente me enviava, as pintava como telas nunca vistas, quiçá nunca pintadas. Alguém que sabia da saudade, alguém talvez também viúvo.

Viúvo como eu.

Senti que a madrugada não seria do mesmo desperdício em que se tinha transformado o dia antes. Enfrentei medos, ultrapassei barreiras, entreguei-me ao limite. Era eu e alguém. Era alguém, plasmado num ecrã, a proferir delícias e eu, ainda articulando tudo nos bastidores, com uma magra lâmpada para que pudesse minimamente enxergar o teclado por onde urdia as minhas sinceras palavras. Foi por solidão, a solidão de uma viúva.

Viúva como eu.

Desenfreada às três da manhã, delicadamente submersa pela forma como do lado de lá era tratada – o cuidado, o carinho, a palavra certeira, a segurança, a sedução – saí enfim para a frente, mostrei-me no palco onde ele me tentava no seu monólogo. Como me abri então, tal como se abrem as corolas das flores ainda não despertas! E senti-me nova, tão nova, tão pura, tão jovem. De tal modo que nenhuma circunstância sórdida da viuvez

viuvez como a minha

havia de desfazer o efeito do feitiço a que voluntariamente me tinha posto à prova.

Como despi a alma fui também tirando a roupa, peça a peça, a cada pedido dele. A chuva e o frio lá fora e eu despindo o meu corpo tão esquecido, sob o foco de uma magra candeia, ajudada pela luz do ecrã onde ele, esse alguém, também se mostrava, acreditando eu que o seu corpo era também alma, e ambos, ambos nós, nos despíamos como se só calor houvesse e o toque dele no meu corpo a reparar a saudade de quem sempre chorou, enviuvada

enviuvada como eu.

Fiz tudo o que não imaginava fazer. Entreguei tudo e de uma forma que antes nunca imaginaria entregar. Rendida estava reaprendendo, com os meus próprios dedos, os caminhos de delícia que o meu corpo havia esquecido. E os olhos também pasmos, por ver a firme entrega que do outro lado acontecia. Não era novidade como fantasia, mas sempre era mais real, por se mover, por achar que com a sua vida se entregava como eu, a fugir da tristeza

a fugir como eu.

Após um estranho êxtase (em que o prazer apaziguado se devolveu em culpa), despedimo-nos, com olhos e boca com boca e olhos sobre os ecrãs, e novamente aquelas palavras que ridicularizavam aquela culpa. Pensei: tonta, és uma tonta, que culpa há?

Culpa de uma viúva como eu?

Não sou velha, o acaso e a morte prematura é que me fizeram assim, presa a essa condição das velhas viúvas que para sempre anoitecem. Porém, sem olhos pregados de sono. Aliás, faz quase dois anos que não sei o que é dormir uma noite seguida. E por isso, após o duche para limpar o peganhento esquecido em mim, eu ainda com a vontade (confesso que renovada) de tornar a espreitar. Isenta de qualquer moral.

Imoral como eu.

Nunca fui preconceituosa. Nem nunca vi defeitos. Sabia defender-me, julgava saber como era o mundo feito. Ainda assim, fui crendo que a solidão havia de gerar milagres. Porque neles sempre acreditei. Acreditei sempre que havia de existir qualquer redenção. Não sou velha, mas serei velha o suficiente para não cair na ingenuidade. E criticava as ingénuas! Dizias-lhes: isso não é possível. E o impossível a mim aconteceu. Porque elas, as ingénuas, eram tão

ingénuas como eu.

Quis repetir, sim, por me convencer que a insónia era também algo em comum com aquele. Aquele alguém. Esse alguém que, como eu, havia com certeza de responder ao meu repto: uma vez mais? Como era grande a carência em mim. Vestida estava após o duche e mais depressa me despi, pela extrema fome, pelo extremo calor que sentia em noite de muita chuva e frio. E dedilhei exasperadamente o teclado, como quem quisesse desenterrar com as unhas promessas antigas. Do lado de lá, porém, o silêncio. Muita e muito estranha quietude.

Quietude que eu já não tinha.

Não foi isto ontem. Foi há dias. Desisti por tanto tentar sem qualquer resposta. Ainda quis acreditar que sonhos foram, que sonhos tive, mas: como podia isso ser possível com a insónia que me assiste há anos durante as noites em que respiro esta solidão triste? Percebi que ele tinha sido alguém que afinal não existiu. Ou que só quis existir enquanto a flacidez não lhe deu atropelo. E, presumo, enquanto lhe durou o gozo. O gozo só dura quando uma erecção não premeditada, que endurece quando se encontra a caça de surpresa, inesperada. E eu fui a caça fácil. Por uma solidão que se sujeitou em ser abusada. Foi então que deixei.

Deixei de ser como eu. Agora, mais morta estou e serei. Para sempre a viúva. De tudo, do mundo. Não acredito que haja alguém mais viúva do que eu.


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foto de Viacheslav Krasnoperov

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