dislate
Aqui me amarguro. Nem junho nem sol me animam. Eu podia ser um cão, desses presos entre o silêncio e a solidão. Latindo como que a tossir. Aquele olhar canino a suplicar que dor não. Cão que quer sempre fugir. A uivar o que já não há, nem tem. Latido imenso largado daqui e que a milhas sempre se ouve. Convulsão que poucos entendem. Nada fiz. Onde estavas? A fazer remendos em casa? A cuidar que a ver o mar te consolaria? Ou procurando outros corpos, desmaiado em sucessivas clímaces dos lugares-comuns? Por que não vieste? Se tivesses vindo, ouvirias o uivo. Não o do cão, mas o do vento. Nem imaginas como o vento soava a algo rasgado! Entrando janela dentro e desmanchando a pilha dos papeis inúteis. Inúteis porque cartas sobre ti e nunca endereçadas. Quis dissolver a existência. Desaparecer. Também quis outros, dei-me a outros, não fui feliz. Quando mais nova, escondia-me naquele pinhal tão denso. Era a infância. E ninguém sabia de mim até que eu decidisse dar aquele ar de miúda que aparece só quando quer. O mesmo ar de parva de hoje, para lutar contra o que fui contigo, de tão contraditório. Mas hoje já não há pinhal. Está lá um parque de automóveis. Poucos. Todos os dias, um parque imenso, e tão poucos automóveis. É ali, quase chegando ao rio. Onde tivemos o nosso último outrora. Aquele momento que não teve qualquer também. Foste. Eu pensava que ganharia asas para seguir em frente, sem precisar do chão que me havias retirado, mas foi um disparate. Porém, fui já (ou: estou a ir, vê-me a ir) e não volto. Pois não saberei regressar. Embora não voe, exijo-me fora daqui à mesma velocidade com que as aves migratórias comem o ar no céu. Com o dislate de continuar teimando em ser quem sou.
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