estatística

foto de Aleksandr Zamyatin


Então, surgiu a primeira hemorragia que te confirmou de que lado estavas. Quer dizer, que das gerais estatísticas passaste para uma mais concreta. Aquela tosse lembrou-te do quanto de afogado te tinhas vindo a sentir, e ali estava: afogavas-te em teu próprio sangue. Tossias e parecia-te a nada, que nada havia para expulsar, mas à medida que tossias naqueles instantes, o lenço de papel ficou tão sujo que foi directo para o lixo da papeleira. Não propriamente ensopado, mas nodoso o suficiente para que não desejasses voltar a pegar nele.

Ainda assim, o apelo do cigarro novo, aquele branco rolo junto a outros no maço. Passou-te a crise e pensaste, enquanto em movimentos lentos tiravas um cigarro para fora do maço, o levavas à boca e ajeitavas o isqueiro na mão pronto a fazer fogo:

- Queimado por queimado… queimado já estou, que se foda!

e o cigarro já era chupado nos lábios para uma longa fumaça, após a cumplicidade da chama do isqueiro.

Entretinhas-te com o sol. Lembraste aquele velho que conheceste no hospital, a contar coisas da sua infância:

- Eu e o meu irmão mais novo ficamos curados do sarampo por termos passado horas ao sol. Não me digam tretas, senhores, o sol cura tudo. Não sei porque é que nos metem em enfermarias quando aqui até apanhamos o que não temos. Morre-se mais da tentativa da cura do que da doença em si

e, com o pensamento no velho, deixaste-te estar fumando, a examinar a sujidade das unhas das mãos. Sorriste a pensar que o velho até podia ter razão, sentiste o quente do sol naquele clima tão tão próximo do inverno, e que esse calor te fazia bem, te tranquilizava, te confortava.

Também te distraiam as pessoas que passavam na rua. Acenaste, de vez em quando, num verde sorriso de esperança. Desse sentimento de nunca ser tarde. As pessoas repetindo-se nessa tarde como em tantas outras tardes em que nem sequer reparavas nelas. Mas, nesse dia, com o cigarro pendurado nos lábios, a receber o calor do sol de dezembro, tu acenavas a essas mesmas pessoas. Poucas, raras, te responderam. Mas o teu sorriso, verde

(amarelo?)

de esperança permaneceu. O que te interessava era, fosse lá o que viesse a suceder, tu ficarias bem. Por ti e perante os outros. Por esses e perante tu próprio.

Apagaste o cigarro segundos antes de uma nuvem passageira cobrir o sol de que alimentavas. Sentiste algum frio. A danada da nuvem, pensaste, leva mais tempo a passar do que quando surgiu, do nada. Sentiste umas cócegas algures no peito ao respirar fundo. E, às tantas, não aguentaste, lá veio mais tosse.

Dessa vez, não bastou um lenço de papel. Foram dois, a princípio. Mais tarde, e porque a nuvem afinal permaneceu, voltaste à cama e foram tantas as crises que nem um pacote novo resistiu. Tu com tanto nojo aos lenços, mas sempre olhando de soslaio

(seria saudade?) 

para os rolos brancos de tabaco no maço de cigarros.



Comentários

dd disse…
Conto com crueza e muito discernimento.

delírios mais velados