um qualquer um



Um qualquer. O sol fulgindo no azulejo branco com ares de quem, teimoso, evoca o verão ainda que no primeiro dos dias de novembro. O costume deste dia de todos os santos remeteria para um dia escuro, carregado daquela morrinha persistente para disfarçar as lágrimas

(de crocodilo)

dos que vão ao cemitério prestar homenagem à compostagem

ou à terra feita

ou aos tijolos, conforme vox populi, dos mortos. Porém, faz sol.

Sim, um qualquer. Não me faz espécie alguma estar aqui e tu já não estares, naquela habituação de tachos e panelas, o forno aquecendo demasiado a cozinha, o aroma de bolo no final da tarde. E esta, hoje – é sabido – abdica da luz agora mais cedo. Portanto, tarda nada, e a penumbra. Fará tons de crepúsculo o sol assim radioso, quando baixar no horizonte?

Será um qualquer. Mesmo que alguma daquelas nuvens se instale e desmanche o laranja-violeta do sol-posto. Não me interessa a luz, se este quarto grávido das mesmas sombras de há… De há tanto tempo. Perdi a conta a tanta sombra que, simultaneamente, me embala e me assombra o sono.

Qualquer um. Os lençóis puídos

não: muito enrodilhados, mas não puídos

com as sombras do cadáver vivo em que me fiz neles. Desalinhados com o cobertor pelas peripécias nocturnas do corpo combatendo o frio durante a madrugada. O colchão à minha direita tão direito, como se ali nunca alguém tivesse o seu lugar. E, do lado onde estou, uma já tão feia cova alinhada pelas mesmas margens com que o meu corpo emagreceu em poucos dias.

Qualquer um, sim. Sabes que a televisão nem tosse? Nem muge. O único gado que aqui habita sou eu, a entupir o vaso sanitário de estrume. Os vasos na varanda exibem

sei eu lá que plantas, ervas, coisas verdes

trituradas sem que veja qualquer caracol ou lagarta infames de fome. Percebo as teias e as aranhas que as tecem, acontecendo nos cantos das janelas. Ontem também percebi uma nova teia, fina, pequena, muito frágil, entre o cinzeiro e o candeeiro, na mesinha à esquerda da minha cabeceira.

Um qualquer há-de ser. Quando procuro os chinelos

onde podem estar? a um canto do quarto? debaixo da cama? debaixo da cama

percebo o cotão acumulado debaixo da cama. O colchão, esse sim, puído e poluído, largando o sacudir do quanto me mexo, pesadelos em alta, na superfície. Debaixo da cama é como o fundo dos oceanos com detritos. Só que sem água. Ou melhor: até hoje, que o quanto tais pesadelos têm humedecido a minha cova na cama com urina e suor, pouco faltará para uma inoportuna inundação. Ou, no mínimo, cristalizações, cálculos calcários a assomar no estrado que suporta o colchão. O colchão que já não te reconhece e,

o estúpido,

tão farto, cansado, muito esgotado de mim.

E qualquer um, um qualquer

isto é: esse com quem estás agora, em cama limpa e certamente muito confortável, alva, romântica e sei-lá-que-mais-clichés

qualquer que seja que podem ser muitos, ou qualquer um, um qualquer que seja e que não sou eu. Que nunca fará o que fiz, e talvez com vergonha de fazer o que agora faço. Qualquer. Qualquer coisa. Qualquer situação. Ou tudo onde não estás junto de mim.

Mas, se for um homem, diferente

terá de ser diferente, senão, de que te valeria a pena?

do que eu fui e do que eu sou, e que saiba, pelo menos, entender do que és feita. Do que sempre foste. E que perceba, sem dar qualquer importância, a razão por que, de vez em quando, queres sair. Basta um qualquer. Já que, há tantos dias que estás fora de mim, para ti bastará qualquer um. Um outro homem, ou seja lá o que for.


*

banda sonora:



Andamos em voltas rectas
Na mesma esfera
Onde ao menos nos vemos
Porque o fumo passou
A chuva no chão revela
Os olhos por trás
Há que levar o que restou
E o que o tempo queimou
Tens fios de mais a prender-te as cordas
Mas podes vir amanha
Acreditar no mesmo Deus
Tens riscos demais
A estragar-te o quadro
Se queres vir amanha
Acreditar no mesmo Deus
Devolve-me os laços, meu amor
Devolve-me os laços

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