nocturno

foto de Maria Cheprasova


Tens a guitarra, ela tem o piano, ele o contrabaixo. Gostaria eu de ter voz ou outras cordas. Para dar luz a este nocturno. Quem dá luz com a voz que não tem? Dizem-me

(asseguram-me)

que tenho as palavras, que tudo quanto as minhas mãos escrevem podem ser canções. Mas, como acreditar, se não as ouço em timbre, acorde e ritmo? Somente sei como soam, monota e guturalmente. E soando a palavras, pela voz que mesmo que só para as dizer não tenho, soam-me apenas ao papel onde

(ou nem isso)

os caracteres são timbrados.

- O poema é música que se sente sem haver pauta ou instrumentos tangidos ou soprados

(vieram agora afirmar)

e eu, tão modesto, com as lágrimas assomando ao papel

(o papel onde escrevo, reflexo íntimo e paternal sob os olhos obstrectas que ajudam a parir as palavras do útero das mãos, e que eu julgara ser o único a escutar),

de emocionado respondo:

- Só brinco, senhores, só brinco. Nada disto é a sério. Fosse solene desejo, preferia não o fazer.

É que hoje, tu na guitarra, ela no piano e ele no contrabaixo, só queria ter mesmo voz para cantar. Um bdá-lá-lá-ti-dó

                                    (word painting)

e apenas isso: cantar. Pode qualquer poeta dizer-cantar? Claro que não, não me mintam por cortesia.

Façamos então este nocturno, não terei receio ou vergonha. Pois que o carioca Newton, cujas palavras foram acariciadas por Jobim e cantadas pelo João Gilberto, já indicava esta pérola:

                                    Que no peito dos desafinados
                                    No fundo do peito bate calado
                                    No peito dos desafinados também bate um coração



Comentários

delírios mais velados