distância incompleta

foto de Nikolai Rassokhin


Alguém parou naquela estrada com a distância incompleta entre o que morre no outono e, irreversivelmente morto, finge que ainda vive no longo inverno. Folhas continuam tombando das árvores numa tristeza tal que é como se as próprias árvores tombassem, sobre as suas raízes, assustando o solo e aquelas aves migratórias por espanto da derrocada.

Nas janelas dos prédios, nenhum fumador. Do outro lado da rua e sob a chuva, frente à pequena vitrine de um tasco escuro, vinte e dois fumadores querem acender os seus cigarros, em série, enquanto o sabor do café com cheirinho lhes provoca a língua.

À vizinha do 3º esquerdo não lhe incomoda o frio: há duas horas que passeia o ferro quente e nervoso sobre tecido de dezenas peças de roupa. Ao lado, piscando, uma árvore de natal que será indiferente a quem habita aquela casa até que seja desmanchada a meados de janeiro. E um homem, de pé, gesticulando.

O inverno finge-se de coisa viva enquanto os mortos não acontecem porque o outono ainda os aguenta por mais de vinte dias. Aquelas aves migratórias lançam gritos a quem passa. Quase como os gatos domésticos: que, fora da casa onde pertencem, emitem miados lânguidos para reentrar no conforto a fugir entre os pingos da chuva.

Os fumadores, como migrantes dos seus vícios, continuam saindo para a mesma chuva e insistem em acender o seu vigésimo-segundo cigarro em menos de quatro horas, após esvaziarem sucessivos dedais de bagaço dentro da tasca escura.

Ferro sobre malha fria é o sermão que o vizinho do 3º esquerdo prega à mulher que lhe faz os vincos das calças. Ele ralha e ralha, e o piscar da árvore de natal insiste em dar àquela janela, por onde tudo se observa, um acolhedor cenário doméstico. Por um impulso destemido dela, vemos a cara do homem pranchada pela sua engomadeira.

Sem muita paciência ou nenhuma, cerca de 45 ou 50 minutos depois, surge na estrada uma viatura do inem, estridente com a sua sirene e em modo de farol azul que acaba por cegar de convulsão um dos fumadores-bagaceiros que desconhecia a sua condição epiléptica.

Vinte minutos passam e o homem-pregador sai numa maca. Então, outra sirene com os mesmos faróis azuis de tejadilho ali estaciona para levar a engomadeira em fúria. Aquele décimo-quinto fumador-bagaceiro tem outra crise de epilepsia. Na maca arrumada na ambulância do inem, grita o homem com tendência a colher o rosto com as mãos, e o paramédico ao lado com muito esforço físico o impede de tal acto.

Mas o problema nisto é que não pára de chover. Os céus são inundações no ar. Pelo que se questiona: como podem as migratórias aves seguir o seu rumo? No seu lamento de hibernação, as árvores despidas ainda lhes oferecem guarida nos seus ramos. Porém, aquelas aves, uma espécie peculiar de longas asas, não apreciam muito o nu, mesmo que seja artístico.

E seguem elas, enquanto seguem todos os intervenientes deste cenário, o seu rumo, por incompleta ser sempre a distância. Quer dizer: nunca há um destino, mas sempre há uma distância. E aquele que havia parado na estrada, a entender como se dá o inverno sobre o outono, deu meia volta e foi resolver os nados-mortos da sua vida.

Apenas restaram as árvores. Por muito esforço que tivessem feito, não saíram do seu lugar e do seu modo de esqueletos no ar. Nem mesmo puderam tombar no chão para chorar o último adeus às suas folhas caídas. Essas, no dia seguinte, irá o varredor recolher em grandes sacos de lixo.

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