missiva

foto de Eric Burkhanaev


Deixa-me um verso teu, Helena, como quem remete telegrama urgente pela frincha inferior da porta, batendo duas vezes com o nó dos dedos, a fazer de campainha e que eu não vou ouvir. Enquanto eu arder assim neste fogo que não sei por onde começou nem que fim virá a ter, não ouço não vejo nem sinto seja o que for, e não saberei da tua missiva

(nem do meu pedido em delírio)

e tu, pelo silêncio entretanto, entenderás que urgência nenhuma há no meu querer saber de ti

(e do mundo).

Deixa-me também uma fotografia tua onde desnudas o peito, no intuito de eu compreender que te ofereceres como mãe de leite a um afogado

ofegante

lactante, sinal de que, sem questão alimentar, desejas delicada língua e sucção dos mamilos. É nisso que escondes a materialização da missiva que te proponho. Por te conhecer tão bem.

Os delírios dão-me no olfacto um cheiro insistente a hortelã, eucalipto e menta, que não me lembra nada o teu corpo, mas a infância. Recorro aos morangos para me aguentar da ausência da matura fruta do teu baixo-ventre. Fico a sorrir enquanto tinjo de vermelho os lençóis e digo

- Há sangue

o teu sangue a pulsar nas tuas veias. Dizes no teu verso: sangue da lenta combustão do desejo.

Porém, divago, que não sei ainda o que diz o teu bilhete, frincha adentro da minha porta. Quando, meio-desperto e cambaleante, notar no pedaço de papel fino e dobrado, com a fotografia dentro, entre o pó do chão, vou queixar-me de dores lombares ao agachar-me para o apanhar, uma tontura, talvez, subindo de novo na vertical, e lerei o que escreveste.

Estou certo

(ou quase, quase, quase porque nunca fui de prometer fosse o que fosse, quase porque nunca fui de acreditar no teu génio poético)

que, ao ler o verso que te pedi, terei o mote para uma epopeia. De um supremo lirismo tal que, no entanto, só tu e eu saberemos interpretar.

Helena, Helena. Que fogo é? Apagas o meu incêndio com os prometidos sumos da tua fruta?


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