lenda do mosca-morta e da sua aranha



Era já previsível que ele,

o mosca-morta,

caísse outra entre tantas vezes naquela mesma teia. E concedesse dar, preso pelos finos tecidos de seda com que ela se cobria nas madrugadas mais frias da estação estival, o beijo na vulva fatal que ensaiava o ritual do sacrifício em outras ocasiões em que ele apenas conheceu delícias libidinosas.

Daquela vez não é que ele quisesse muito, porém. Sentia algo diferente. Isto é, primeiro sentiu que sim, que o desejo o inflamava, pelo jogo à beira-abismo que o atraía. Depois, recordando outros momentos em que não foi tão feliz, percebeu que havia perdido o interesse, o que acontece sempre que um jogo vicia, sempre que a repetição se torna numa rotina de criar sono em vez de interesse.

Tinha ele muito medo a aves de plumagem negra e asas brancas. Não sabia dizer que nome tinham, nem nunca o quis saber, eram para ele mau prenúncio, mau agoiro só de avistá-las. Enfim, este pobre de espírito sabia de nada, de medíocre discernimento; senão, teria há muito deixado o local onde as aves abundavam e tentaria a sorte de habitar um outro lugar onde efectivamente nunca mais poderia avistá-las.

Ela não era nem negra nem branca, não tinha asas. Era de uma tez pardo escuro, sacudida pelo sol. Com uns olhos que tanto lembravam o rio pela orla da manhã como a abóboda celeste de noites sem lua. Ora rastejava, ora subia por paredes e árvores, exibindo o seu volumoso ventre de vénus antiga. E que era ela, garantia a ele tantas vezes, a solução para que a prole dele continuasse a conquistar mundo. Ele, o mosca-morta, a conquistar mundo.

Certo dia, ele apressou-me muito entre os penedos mais altos. Era manhã muito cedo. Tinha acordado em sobressalto com o estrondo de algo contra a pequena janela do esconso quarto onde dormia. Janela que, por ser tão diminuta, deixava sempre semi-aberta quando as noites se tornavam mais quentes. No susto, ergueu-se da cama e foi espreitar o sucedido. E viu então, sobre o parapeito, pintalgada de sangue, uma dessas aves que não sabia o nome e lhes tinha fobia.

Apavorado, completamente nu, correu para fora de casa e subiu aos penedos. Ali, entre dois gigantes eucaliptos, escutou

- Ó meu mosca-morta! Mosca-morta! Mosca-morta…

e percebeu, pelo tom da voz que o chamava, que só podia ser ela. E foi ao seu encontro. Passou-lhe a ansiedade e o medo. Sentia que estava a salvo, com ela para o proteger.

Após o previsto encontro, ela, sem sequer saudar bons dias, tentou devorar-lhe o pénis. Mais que uma vez. Ele ria, de cada vez o intento dela. Ria muito e alarve, com o pénis bastante erecto, a glande brilhando como seda, sob os raios de sol infiltrados por entre os ramos dos dois eucaliptos, e pedia

- Ahhh, não me faças isso!

De tantas tentativas falhadas, entre o esgotamento e a impaciência, ela acabou por conseguir o intento. Devorou-lhe o pénis em um só tempo de gula. Ele quedou-se por meros instantes sem reacção, até que sentiu umas dores nas costas, e sobre as omoplatas. Passados esses instantes, pôde perceber que lhe haviam nascido, numa assentada prodigiosa, novos membros. Eram asas grandes, completamente brancas. Sentiu um apelo que desconhecia e acabou por voar, perante o olhar dela, com a boca ainda escancarada do enorme pénis que havia devorado do baixo-ventre do mosca-morta.

Conta hoje, quem sabe, que naquele sítio muitas aranhas de diversas formas e espécies tecem as suas teias de encantos de seda. E que, quem for observar pela hora do crepúsculo, pode ver, mil vezes multiplicadas, moscas mortas sobre as teias que as aranhas se recusam a tocar. Contam também, outros observadores madrugadores, que essas moscas presas e mortas nas teias servem de alimento às pegas e aos gaios que assobiam manhã cedo antes de voarem sobre os telhados, a enxotar do mundo coisas e pessoas que carregam, vida toda, cruzes muito negras.

Era previsível que, com um sonho destes que a faz despertar sempre que há madrugadas mais escuras, ela tenha começado a entender tudo o que está à sua volta e as vozes que ouve, inconstantes. Que é o mesmo sonho que lhe corre nas veias há tantos anos e que a vem avisando de algo completamente sobrenatural.

E previsível sempre foi o momento este em que ela pega num pedaço de vidro e corta os pulsos, pensado em voz alta:

- O que é podre não apodrece outra vez, mirra. Solta-se no vento, num último beijo de pó.




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