soluços

foto de Christophe Jacrot


Os soluços não são grande acontecimento para um corpo que se quer desperto e esperto. Não fazem qualquer vez aos bocejos. No entanto, podem contrariar o bocejar do cansaço. Então: sim, são qualquer coisa, afinal, os soluços. Como uma voz que diga: ainda estou aqui. A noite, porém, parece-me querer abominar os soluços que tive e inerente vontade de quedar desperto, a vontade de mim ao recusar a reclusão de sono que um bocejo indica. A noite, com uns estranhos predicativos condescendentes, ainda avisa

- Está bem, não te recolhas, mas junta-te aos nocturnos viciados.

E eu, pouco espantado por ouvir a noite falar como gente, só admirado por perceber e lamentando apenas: conheço ninguém desses vícios. Poderei dar perninha de intruso? Onde se faz tal celebração?

É que eu, a viver na corredoura do sangue e sentidos sóbrios, na rede das jornadas, sou mais solar; isto é: sou pleno à luz do dia, ainda que filtrada pelo embrulho das sombras das nuvens pardas em castelo.

Acontece que, sem sol ou sem sol nublado, há noite. Ora, da noite fiquei desabituado com a cansada rotina do dia mas, não cedendo que do hábito se faça o monge, acólito me ofereço à noite em raras vezes com esta. Dessas, como esta, em que concedo sair da desdita referida rotina

(que muitos odeiam, e contrariam).

Faz-me espanto, nestas ocasiões, saber dos que, comungando a preferência solar como eu, em raros momentos como este

(de sair da rotina por oportunidade imprevista)

ignoram raridades, e vão despedindo-se como que empoleiradas galinhas, todas juntas de modorra, enfiadas de bico sob as incoerentes asas, à espera que o galo, no seu trejeito de disciplina quase militar, ao livrar-se do sono, sonoro dite a alvorada para a retoma da freima dos bicos em reconquista dos grãos entre palha, terra e seus próprios dejectos nocturnos. Essa gente segue. Não fica aqui, comigo, a contrariar o paradigma de que a noite serve apenas aqueles viciados

(em quê? que vício, afinal?).

Estas pessoas, que eu penso que fogem de mim ou dos nocturnos desafios, têm as suas vidas ocupadas, mesmo na escuridão; talvez sigam rituais dos quais já não são capazes de desprendimento. Enfim: como os melros, no seu assobio de recolhimento, que só cedem apenas à variação da luz, nunca à das horas. Nunca a raridades. São monges de hábito por convicção.

Esta noite, antes da chuva, já essas plumas negras dormiam há tantas horas, apenas pude perceber que só não há solidão total porque o silêncio é compassadamente interrompido pelos latidos tristes dos cães, a justificar a distância entre teimar ficar acordado ou soterrado em sonhos, não fosse ainda essa condição da apneia que qualquer soluço suscita, a parir indesejadas insónias.

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