talento desperdiçado

foto de Maria Neohoriti


São vários os caminhos que partem desta clareira onde finalmente chegaste, a pensar que é aqui mesmo o lugar para o teu repouso. Escreves

uma cama

e nela te deitas, espraiado na luz da tarde e muito para lá do crepúsculo. E, em plena madrugada despertas, na sua hora mais madura, sob meia-escuridão-meio-luar que

(consideras, após três minutos a congeminar)

te devolveu um vigor e uma certeza: continuar. Escrutinas as sombras com os olhos ora cerrando, ora muito abertos, na interpretação das personificadas silhuetas dos arbustos e escreves

estou preparado

com o pensamento convicto de que a partir desse momento progredirás, qualquer que seja o trilho que escolhas, após a clareira.

Avanças pela escuridão entre arvoredo como se fosses toupeira descoberta ao sol após romper a terra da lura, aturdido com a mesma cegueira e

o mesmo instinto

(escreves), pelo que o ritmo dos teus passos não se altera, como se fossem delicadas garras a rasgar a terra. Pensas, intrigado,

que animais percorrem este trilho?

(é como se o tivesses escrito)

no preciso momento em que o último passo dado te faz parar. Sentes que o pé, na dianteira, se afunda, o terreno não é com certeza o mesmo. O outro pé, atrás, concede-te o equilíbrio, e por isso ergues o dianteiro, acertando-o na mesma posição do outro.

Estou só, e desorientado

escreves, ao mesmo tempo que levantas o olhar para cima e

(deixando as dioptrias de toupeira)

percebes a abóboda celeste inundada de estrelas, a lua já escondida. Ficas minutos a contemplar o que até já conheces, mas sempre com a mesma surpresa da primeira vez. Rodopias sobre os pés, de sul para oeste, depois a norte, então a leste; uma, duas, três, quatro, cinco vezes num ritmo de relógio, preguiçoso e contemplativo, e ao sexto movimento virado a leste percebes que a luz impõe o romper do novo dia.

Olhas para baixo e já distingues o chão arenoso, os teus pés tão afundados, começa uma brisa quente a ocupar-se do teu corpo e escreves

estou num deserto

ao mesmo tempo que aquele vigor do despertar se transforma em torpor. Cruel o tempo que passa sem regresso, já o sol te inunda de luz e, afinal, tu sempre como a tal toupeira, de tão cego e desorientado.

Escreves mais nada. Ergues-te da cama, olhas os livros e as tuas roupas poisados uns e outras de forma atabalhoada, aleatória, o cinzeiro tombado no chão com a cinza e as beatas dos cigarros a fingirem minúscula horta numa ilha vulcânica, o copo com um castanho desmaiado do fim de bourbon, e murmuras:

– Amanhã. Amanhã vou certamente escrever.


Comentários

delírios mais velados