«quero sentir a dor dessa manhã»
foto de Barbara Morgan |
Regressaste à tua ausência de mim, e eu cicerone de casa sacudida pela brisa da beira-mar. Das ondas ao longe, o mesmo brilho dos teus olhos; da maresia tão perto, o mesmo perfume da tua pele – frutada quão salgada.
Fez esta tua ausência uma epifania em mim, sob os acordes do velho piano, ali encostado e sorridente por entre tantos livros de poesia – os que encantam e sobressaltam o teu espírito. Epifania a saber que o mundo, afinal, um lugar onde ainda sou livre.
Este batimento cardíaco ao ritmo dos minutos em que demoras no teu regresso, majorando a angústia de tanta saudade que te tenho. E ouço música alegre, e faço soltar o corpo, para que supere esta espera…
O inquieto peito na sua aflição cardíaca faz do baque dos segundos o mesmo ritmo pelo anseio crescente de querer-te em mim, e cada vez mais ficam escassas as palavras…
Intensificando, porém, a sintonia de ambos.
Pois, cerrando eu os olhos como que numa sonolência ébria e confortável, consigo sorrir ao entender que o teu pensamento, sem deriva, está também aqui, em mim.
Tudo então predicado: havemos de ser livres, caminhando apaixonados, deflorando a luz da manhã, numa dor que amansa, e que nos redime.
***
Chega de tentar, dissimular e disfarçar e esconder, o que não dá mais para ocultar. E eu não posso mais calar, já que o brilho desse olhar foi traidor, e entregou o que você tentou conter, o que você não quis desabafar, e me cortou...
Chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar, e se perder. E se achar, tudo aquilo que é viver! Eu quero mais é me abrir, e que essa vida entre assim, como se fosse o sol desvirginando a madrugada. Quero sentir a dor dessa manhã...
Nascendo, rompendo, rasgando, tomando meu corpo e então eu chorando, sofrendo, gostando, adorando, gritando... Feito louca, alucinada e criança, sentindo o meu amor se derramando. Não dá mais para segurar: explode coração!
Luiz Gonzaga para a voz de Maria Bethânia
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