vizinhança

foto de Brett-Roeller


Sem sequer ter dado conta

(isto é: pensando que jazigo inesgotável ou contando com ovo em cu infinito de galinha)

o velho baú tornou-se num deserto de ideias sem consequentes renovações, um passado sem presente ou um presente pouco passado sem ambição de qualquer futuro. Migalhas de madeira desfeita com os anos, um pó acumulado pelos bichos que a comem. Os pardais surgem a fazer festim junto ao riacho, entre arbustos frondosos acolá, como que, ouvindo pedal da bateria da música que fiz tocar, quisessem por sua vez trilhar

(trinar?)

um acorde de chilreios para uma melodia estridente mais ou menos pop

(onomatopeia?)

ou um rock

(pesando?)

ou: seja lá o que for. O baú ainda a fazer notar o seu vazio exalando aroma de bolor, as formigas ocupando território de forma completamente vã

(ó meus pequenos seres!, aqui só se celebrou, em tempo de promessas gloriosas, o alimento para ego e alma carentes, nenhuma migalha ireis conseguir para essa vossa colheita de dar sustento proteico ao inverno vindouro).

Aquele que escreve com arte escusa qualquer tipo de introdução ao discurso e, afinal, eis-me aqui, em jeito de nota introdutória que nada significa a não ser dar alento às cabeças mais curiosas. Uma atabalhoada apresentação

(pois sou cicerone em casa alheia)

para fazer perder o sentido do que realmente havia, sinteticamente, o que dizer. Como que a perder o rastro de uma sensação

(– Estavas a dizer….
– Eu, a dizer? Não estava a dizer coisa alguma, senhora!
– Esqueceste.
– Provavelmente não, vizinha, nem me lembro sequer da intenção de dizer fosse o que fosse…),

e o que vejo daqui são reflexos do sol batendo nas janelas da casa em frente, parecem cristais refulgindo, e pressinto nestes fulgores sinais que em plena tarde me convidam. Dizem-me:

– Visita-me para esqueceres essa nostalgia, meu rapaz!

e eu a duvidar da minha coragem para descer à rua, contornar o cruzeiro, e fazer soar campainha delicada. A questão aqui, já todos terão percebido, é a das carências humanas, a mescla entre a delicada sugestão de romance que afugente fantasmas e a redonda necessidade física de afastar teias de aranha

(entendida seja essa imagem como uma virgindade readquirida, grafada em humor quase vernacular)

dos sítios esconsos do corpo, por infeliz uso, ou de completo abandono. Acontece que o meu pénis, depois de algo parecido há coisa de dias

(sei lá do tempo: vinte e quatro horas podem representar, no meu caso, vinte e quatro meses),

um prurido qualquer, uma sensação pesada de cansaço, e o resto do corpo sem líbido alguma. Taquicardias, enxaquecas, ansiedades

(mirabolantes, crede)

que me indispõem, ou melhor: não me predispõem para dar conta de certos confortos e carências gritadas. Creio até que esse resto de mim outra coisa não será que um húmus que os insectos cheiram. Presumo que a presença das formigas, afinal, foi nada em vão. Estas, como sentem a fome de um inverno ainda longe de acontecer, afiam cedo as mandíbulas para a jornada quando primavera e verão se confundem, e vão à sua luta-labuta

(pobres operárias).

O bolor dos baús havia de ter o mesmo efeito soporífero do clorofórmio, para adormecer-me num sono sem sonhos

(ou sonho sem sonos)

e deixar tudo acontecer sem pena ou julgamento de eu aquiescer em modo sóbrio e consciente. Não quero hibernar fora de estação, mas não me vejo vigoroso nos dias que prometem ser os melhores. 

– Explique-me o que é isso dos dias melhores: há, de facto, dias melhores, vizinha?

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