tons de cinza

foto de Dzintra Zvagina


Estas circunstâncias são coisa nenhuma senão mero acaso. Sobem vultos como espectros, a luz esmorece num tremelique de tons de cinza e, depois, um vago clarão – nem se sabe bem se por dioptrias desajustadas, se por um pequeno raio de sol a tentar-se, oblíquo, entre a camada das nuvens, ou, então, muito mais propenso, se pelo olhar que ora desmaia ora desperta quando o corpo muito repousado e a respiração se torna mais pesada, aligeirando a fronteira entre a consciência e a vigília – nada que tenha grande significado nesta tarde de modorra.

A temperatura é amena. Levantou algum vento que, momentos depois, se deixou domesticar pela inconstância da pressão atmosférica, e ainda que tivesse chuviscado, ou seja: aquela sensação de chuva mas não chuva, de nevoeiro mas não nevoeiro, nada significativo que represente ameaça (pelo menos prolongada) ao tempo pré-estival destes dias que prometem.

Por forma que tu, no borralho da nossa entrega, te desvairaste pela casa sem roupa que te cobrisse, nem frio que te parasse, farta de um sorriso primaveril, a crer que depois da janela se prolongariam paisagem e horizonte em cor e fulgor inerentes à tua efusiva felicidade pelo nosso reencontro e consequente redescoberta e entrega dos corpos. Porém, admoestou-te o tom grisalho do dia que testemunhaste atrás das cortinas como se tais circunstâncias climatéricas viessem traçar auguro de desgraça e engano teu. Ou desengano teu e engano meu, seja lá como for.

Ora eu, fatigado pelo frémito muscular a que teus membros, bocas e desenvoltura excitada me desafiaram, não me importo que venha até ser noite cerrada, sem luar ou sequer estrelas que te dê razão para outras românticas demandas tuas que me façam retirar da cama. Eu, que já tão embrulhado estou no lençol manchado e enrodilhado, e com a cabeça mergulhada na almofada. Pedir-te que não me perturbes no meu descanso é o que a minha indiferença ao teu desvario quer significar.

Entretanto, e agora, mesmo que o acaso de estas circunstâncias acabasse por tornar-se no oposto do descripto, já nada contrariará a cisma tua que eu um monstro lascivo que te deixou só no recobro do amor feito. Que és a amante abandonada por eu querer apenas dormir. Sentes que tens todos os argumentos e inventarás outros mais para prolongar essa cisma. Um deles, por ser o principal para ti, é que eu amor nenhum, que apenas me reaproximei de ti por ser macho carente de carne, que não fosse isso teria desviado o meu passo para não se cruzar com o teu.

Talvez até tenhas razão. Sei lá, a vontade humana tem coisas estranhas, concordas? Por que não bailas por entre a neblina fazendo de conta que há um véu de tule que te envolve num rito? E deixas que a imaginação, no melhor sentido, te leve, te excite e te canse? Que te fatigue, mesmo, dessa excitação já platónica…

Resolve a paz do corpo com a alma nessa ânsia de simbiose e depois logo, ou amanhã, trataremos do que é mesmo objectivo. Então, ambos, faça sol ou chuva, azul ou cinza, iremos com certeza achar o predicado do que nos aconteceu, tirar as devidas ilações e agir em conformidade. Até lá, deixa, ou retoma a mesma vontade de entrega comigo. Junta-te ao meu sono. Concede apenas que tudo o que não é rotina, é um mero mas, afinal mesmo, feliz acaso. Dádiva. É isso, dádiva! Ora nem mais. Percebes? 

Eva? Eva! Então estás a dormir, Eva!?


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