redenção

foto de Larisa Lofitskaya


O meu pai era um abastado lavrador de Lavra, em Matosinhos. Possuía um destes solares que hoje são utilizados como estâncias turísticas, mas logo foi perdendo tudo, desde que chegou do Brasil um irmão dele, ou meio-irmão, fruto azedo de um deslize do meu avô muito mal contado e que a minha avó engoliu e acabou mesmo por acarinhar e criar como se fora seu filho. Muito jovem e insatisfeito com o pouco que Lavra lhe parecia como terra e como gente, e da lavoura como forma de vida e de trabalho, cedo quis fazer vida e dinheiro na cidade, o meu avô deixou-o construir uma fábrica de conserva às suas custas, dizia o bastardo que pagaria tudo com os primeiros lucros, mas ilusão do meu avô, o meu pai bem avisava dos desvairos do irmão. Quando a fábrica rendeu os seus primeiros dinheiros, distribuídos os míseros salários pelas conserveiras e paga a safra do mar, que lhe trazia a conserva, esse meu tio

(ou meio-tio, apesar de sempre ter ouvido dizer que isto de meios-irmãos só cabe aos filhos da mulher adúltera, ou fora do marido, quando não são filhos do mesmo pai),

com o lucro que ganhava, deu-se ares de novo-rico e foi gastar o que tinha para o Casino da Ponte, que ficava lá em Gaia, depois de atravessar a ponte de ferro. O meu avô ficou furioso, ou o quanto se disse, mas acabou por perdoá-lo, enquanto o meu pai se estafava, fazendo o serviço do campo, com mais meia dúzia de rendeiros que apareciam de passagem. Mais tarde o meliante do meu tio emigrou para o Brasil, depois da estroina por toda a cidade do Porto, com jogo e mulheres, fábrica passada para outras mãos por paga de dívidas, e o meu pai sempre a dar o cabedal pela terra, para manter o casarão e as criadinhas da minha avó, que o meu avô, esse, já nada fazia, deu-lhe uma moléstia nos ossos e ficou quase paralisado até que a morte o levou.

Foi precisamente nesse tempo após a morte do velho, lembro-me eu bem, com os meus dez, onze anitos, que o meu tio regressou do Brasil, dizendo-se rico e abastado. O meu pai recebeu-o com um abraço, afinal era o seu sangue, apesar da meia substância, e acolheu-o na casa herdada, apresentando-lhe a minha mãe, uma bonita senhora que o meu pai conheceu em Custóias, filha de fidalgos nas lonas, obrigados a abandonar as terras e a casa a outros brasileiros que, regressados, praticavam a usura aos mais necessitados e levando-os à falência. À custa disso teve o meu pai muitos dissabores das gentes vizinhas que o acusavam de receber um brasileiro, que era gente tida como falsa. Mas esse tempo já lá vai, e se o meu pai se meteu a beber não foi porque a colheita e outros negócios lhe corressem mal, não foi porque o meu tio ou outro brasileiro o usurpasse do dinheiro e das terras; antes fosse, para felicidade minha e penso que também a dele.

O meu pai começou a beber e teve o ataque que o levou, foi porque esse mesmo brasileiro que se dizia seu irmão e meu tio levou a minha mãe com ele de volta para o Brasil. Deixou-se a estúpida da minha mãe encantar-se com as promessas do cunhado fajuto, deixando marido e um filho que não amou. Não, a minha mãe não soube amar-me nunca, por isso cresci assim, por isso sempre foi duro para mim aceitar as mulheres, sempre tive medo de que um estrangeiro qualquer pudesse ser mais do que eu e mas levasse, que elas sempre prefeririam o brasileiro, o venezuelano, o americano.

Foi assim que, órfão aos treze anos, tive de arranjar-me como pude. A minha avó, coitada, foi entregue a um albergue para velhinhos e nunca mais a vi, nem soube mais das terras em Lavra, parece que depois do 25 de Abril os últimos que lá faziam jornada se apoderaram dela com direitos revolucionários. Eu é que nunca mais quis saber, tudo aquilo fazia-me mal, nunca foram boas recordações, por isso fugi e acabei por me empregar numa casa modesta na Rua dos Caldeireiros, no Porto. Uma casa que fabricava tachos, panelas, salamandras, ferros a vapor, caldeiras. No ferro e no latão é que as minhas mãos aprenderam ofício e a vida, e foi na vida das ruas, becos e pensões que o meu corpo se fez homem, e comecei por perceber que, enfim, a mulher não passava de uma puta, por isso se deitavam com todos os homens, por isso fugiam para o Brasil. Nunca gostei muito de me envolver com elas, quase sempre acabava por as espancar no intuito que fugissem e, no entanto, pareciam moscas atrás de mim, ainda sendo eu adolescente. Porém, as mulheres que eu depois acabava por maltratar e desprezar exerciam sobre mim algo que não compreendia, um encantamento qualquer, quiçá feitiço, imaginava então. Ficava fascinado com as lavadeiras nos tanques públicos, as mamas a saltarem dos seus decotes salpicados de água e sabão, com as pernas e ancas roliças das carvoeiras descarregando o pó negro para os camiões, nessa altura em que a carqueja e o carvão vinham de caíco rio abaixo.

Aceito que éramos pobres nós, os portugueses desse tempo, no entanto alegres. Sim, a alegria era um contraste colorido dessa pobreza, não sei porque algumas pessoas falam em país cinzento. Claro que depois veio a guerra, à qual escapei devido ao meu padrinho que me safou, acho que foi o dia mais feliz em toda a minha juventude, o dia em que soube que não iria à tropa, que não iria para a guerra, enquanto os meus colegas de trabalho e camaradas de rua, se despediam das suas namoradas e amantes, uns em quartos de pensão, outros mesmo debaixo da ponte, lembro-me perfeitamente de ter assistido a uma cena dessas no esconso entre a ponte antiga e a nova, ela gemia e não queria, ele insistiu, disse que podia ser a última vez que estariam juntos, e tudo aconteceu ali. Chovia

(parece que toda a minha vida há uma chuva sobre mim e sobre o que digo e penso)

chovia tanto como no dia em que chamei Mãe!, e ninguém na casa para me responder, só o meu pai mudo com um bilhete nas mãos, as lágrimas que desciam na sua face sem foz

(até à foz seguiu o sangue daquela virgem que um dos meus companheiros tomou debaixo da ponte, o sangue deslizou até ao rio – isto é coisa assim de imaginar, nada vi, só ouvi gemidos e percebi os movimentos dele – com a alvura de um dos seios que ela deixou por fora da blusa e as coxas nuas até à raiz… O fulano que nem sequer foi para a guerra, fugiu, como fogem as mães, fugiu em direcção a França, se hoje não é um brasileiro que usurpa o dinheiro dos pequenos proprietários endividados, é um emigrante regressado, desses que fazem casa com telhado inclinadíssimo, cercada por grades acabadas em lanças douradas e os portões ladeados por águias do sport lisboa e benfica, clube do coração que ninguém duvide alguma vez ter sido esquecido enquanto fazia faxina nas latrinas das estações de metro em Paris).

Choveu sempre desde o dia em que chamei Mãe! e só o meu pai com uma lágrima rolando pela face, sem foz. De maneira que sempre tive as mulheres que quis, o meu problema é que não sabia lidar com elas, sem ser despejando esta fúria masculina que aprendi nas tabernas e nas ruas, tomava-lhes o corpo e abandonava-as depois, era assim que tinha aprendido, e se elas insistiam, dava-lhes porrada e, mesmo assim, não me deixavam, não me largavam.

No dia em que a minha mãe faria 40 anos e eu me lembrei da data, encontrei uma moça, uma rapariga nova ainda, não tinha ainda vinte anos, lavadeira, e não queria ela saber de mais nada, apenas porque me encontrava ali a chorar. Ora eu chorar em frente de uma mulher!... Porquê? Mas ela agarrou-me e disse que os homens choram porque um dia foram pequeninos e isso não se esquece. Surpreso com as palavras dela, abracei-a com desespero e contei-lhe a minha vida, com as palavras bebidas numa garrafa de vinho que tinha roubado ao meu patrão. Disse-lhe sobre a raiva que tinha contra elas, raparigas e mulheres, que não me largavam, mulheres até muito mais velhas do que eu e não me largavam. Lembro-me que ela então olhou-me com um olhar que nunca antes tinha visto numa mulher, e era ela tão menina, e respondeu-me à dúvida sobre a minha fraqueza, por que deixei que as lágrimas rolassem sem foz como as do meu pai?

– Porque tens uns olhos muito bonitos mas tão tristes que precisam de alívio!

e então percebi, ou fui percebendo com o tempo: não é uma mulher que faz as outras. Nem é o espírito santo, como quis a minha mãe ensinar-me, quem nos traz boas novas ou a redenção.


__________________________________
texto adaptado como crónica a partir de excerto do esboço de romance A Presença de Édipo, de 2003, inacabado

Comentários

delírios mais velados