embalo

foto de Dimitry Shkurenko


Os segundos do relógio remoendo o silêncio da madrugada

(e sabes que nunca um silêncio absoluto, apenas queda intensa do ruído, soçobrado no rumor da distância, no latido de um cão mais próximo enfurecido com faro pelas sombras, latindo como alguém

(gente)

que tosse, e dizes:

– ele tossiu

ou seja, enrodilhou lençol entre pernas e pescoço, virou-se para o outro lado retomando os sonhos, e a articulação da cama três estalidos ligeiros. E dizes mais então

(na realidade pensas e ouves a tua voz, já que é madrugada, tudo quieto):

– novamente o silêncio

mas sem silêncio absoluto, apenas um corpo tossindo próximo, ou ressonando a inquietação de um sonho, um cão lá mais longe intrigado com o mesmo faro pelas sombras, e um burburinho a fazer acorde com a tua mente),

de modo que o cigarro entre os dois dedos te parece com maior expressão: puxas a fumaça, ouves o tabaco crepitando na sua condição de brasa minúscula, inspiras e, segundos depois, expiras com um certo alívio como que a entender que está e ficou tudo bem nesse mesmo instante

(uma espécie de equilíbrio, pensas convicta)

enquanto as tuas mãos e dedos protagonizam mímicas de uma ligeira discussão que encenas no teu pensamento. Entretanto

(os segundos no relógio sem parar),

surge o motor de um veículo em modesta rotação na rua, um rumor impreciso de máquinas mais distante, há um vizinho a interromper a tua atenção com uma pancada, um frigorífico que abre, a descarga de um autoclismo, sons perturbadores destes meio-silêncios nocturnos, sabendo que eu não terei que grafar esses ruídos com onomatopeias

(é um cliché de banda-desenhada).

Em todo o caso, continuam os segundos do relógio na mímica rotação de planeta a cumprir a sua órbita, e tu, menos afeita a questões científicas, encontras o caminho do sonho naquela lonjura do pensamento que divaga ao ponto de te sentires agindo em prol do bem maior do mundo

(tu, uma mulher orgulhosa de o ser, a quem ninguém poderá apontar dedo acusatório, uma vez…

uma vez que…

que …        …) 

E adormeces, perdida no remoinho dos segundos em infinita espiral, testemunhando a teoria da relatividade.


Comentários

delírios mais velados