intérprete

foto de Delibay Gilcan Mete


Como posso competir com o guincho das gaivotas? Se vêm antecipar o sal dos meus olhos, ainda que eu queira escondê-lo

(grasnam agora as gaivotas, competindo um pedaço bolorento de pão acudido do lixo doméstico espalhado na rua pelos gatos).

Elas augurando que, por estarem em terra, tempestade no mar; e faço da sua premonição argumento para o absurdo de tudo quanto me arrelia, remói, dói, e… Por onde, ou por quem, me desiludo? A contar as vezes, numa patética estatística, de quanto fui equívoco. Vida vezes fora nada tudo e, por isso, não vou mais. Dói. Não quero que doa, e sei que não vou repetir. Ou pensar em reabrir. Desejar o regresso. Enlaçar-me fraco em tentações fora de contexto. Então, prometo: não voltará a doer. Eu sei o que não devo mais abrir. Não vou, se dói. Mas não localizo bem a ferida. Pelo menos, não identifico o centro de onde parte a dor. Sinto que sei que não posso deixar com que volte a doer.

Solução: beber, foder, talvez rir. Sempre, seja como for, a insistir: se dói, não lhes enfies os dedos.

Não me dês tarefas domésticas. Deixa-me à boca de uma praça com pombos se os rostos das pessoas são miragem. Deixa-me ser o velho que não se resigna. Aquele velho que acorda entupido de tosse no colchão húmido de cartão e mesmo assim assume-se a cada novo dia erguido, bem cedo engolindo a sua dose de café amargo requentado em bico de gás moribundo, e junta côdeas com outras mais migalhas. Dentro da praça, solta os fragmentos, como se abrisse gabardine a exibir a migalha miserável do corpo que o tempo lhe deu. E os pombos erguem-lhe estátuas, várias, invisíveis na praça.

Já não me incomoda

(que importa ao velho isso da morte?)

o algoritmo do acaso, da velha e incógnita coincidência. Irrisória e escarninha por maldade, a rir-se desbragada do insucesso de quem decidiu não lhe dar importância, toda altiva, a filha de uma puta!

Fosse eu árvore ou mero arbusto

(fosse eu uma simples tecla de piano)

deixaria o vento a insistir, até que me tombasse. Como quem é fodido, na vez de foder, e se rende à fadiga, extenuado. A pedir misericórdia,

(um dó solitário e insistente na mais baixa escala, em assombro semelhante ao profundo e pesado respirar de um moribundo)

a implorar basta.

Os guinchos são constantes. Devo horas ao sono e este guinchar das gaivotas, que depois grasnam, e depois voltam a guinchar. Como posso competir? Nenhum grito meu tem tamanha coragem, e efeito tão devastador.

Por tal, em vez de um pranto

(ainda que tal desobedeça, fisicamente, à convulsão que não consigo contrariar) 

a música calculando-me o sono. Se te contar que sonho, desacredita-me, por testemunhares os meus olhos sempre bem abertos. Ninguém dorme com dores.



***



Until I'm one with you
Until I'm one with you
My heart shall not pass through
It'll only be forsaken
Until I'm one with you
Our world is torn in two
Until I'm one with you
Our love will be mistaken
Until I'm one with you
My death they will pursue
Until I'm one with you
My life will be degraded
Until I'm one with you


Ryan Bingham

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