tanta água



Tanta água. E são estes dias assim como se fossem domingos de modorra repetidos, ainda que o senso comum nos confira que hoje é sábado. Repara: é aqui, no escuro que ocupa estas quatro paredes, essencialmente, onde existo, independentemente do seu recheio ou da forma como, solidamente, possam as paredes estar escondidas. É o espaço onde existo de uns quantos metros quadrados. Então, as estantes, a mesa, os livros, todos os outros objectos, ilusoriamente distorcidos pela parca luz, não diminui a sensação de estar fechado, cercado, impedido. Os estores estão corridos já que a vista para a rua é baça e húmida 

(fui espreitar numa nesga e confiro: tanta água) 

e também porque, sabemos por ser janeiro, a pouca luz diurna que se vai esvanecendo em minutos e… ora aí está: eis a noite instalada. É tarde e eu a conjugar repetições. Como posso dizer outra coisa se o barulho da chuva sobre o pavimento lá fora majora esta modorra? Que razões 

(a água batendo também nos estores cerrados) 

tenho eu para matar a tua ausência quando sou apenas sonolência e bocejo, depois vigília, não sabendo se hei-de continuar acordado ou se me deixe mergulhar num sono efectivo que me leve para lá 

(embalado ou não com a 

com a 

com a estridência da água sobre o pavimento, e sobre os telhados 

repara: a caleira entupida como miniatura de catarata que desce do telhado para o pátio, as ervas das fendas ofendidas também com tamanha catástrofe, impedidas) 

para lá onde não sei se o que ouço, vejo, cheiro e toco é realidade. Sempre, porém, com a presença mímica do teu corpo. Sabes como são os sonhos, ora transformam o que para neles levamos numa alegria quando tudo nos parece equilibrado, que o mundo, enfim, vale a pena, ora havendo tristeza, nostalgia, depressão, cada objecto insignificante assume um monstro, um fantasma. 

Então o teu corpo, evocado assim pelo subconsciente, cujos corredores são sempre preenchidos de duvidosas surpresas, surge, vai surgindo 

(as ervas daninhas nas fendas impedidas de progredirem – não há sol, só chuva e chumbo do céu, tanta água) 

ora como vento manso e na orla da aurora trazendo de leste uma ligeira intenção estival, ora como o barrento rio dourado pela lama enfurecido na pressa que tem de levar tudo para o mar e para o abismo que há nele. 

Sim, presumo que sejas tu assim representada nos meus sonhos, sejam estes ligeiros ou pesados. Conscientemente, sempre me pareceste uma flor 

(uma flor de sal) 

diluída em tanta água. E compreendes que é isso que acrescenta, ao frio que tenho, ainda mais frio? E que nos dias estivais pode ser o arrepio do hálito de qualquer fantasma que me persegue? 

Não te preocupes em perceber se almocei, se janto… um chá a ferver em chávena entre as mãos faz parte do ritual que em janeiro cumpro para me aguentar. Vem cá conferir as minhas mãos, os meus dedos. Gelados como mármore, sentes? Socorre-me. Salva-me. Conheces magia, feitiço, para fazer parar tanta água?


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