passos na calçada

foto de Vladimir Osaulenko


São os raros passos na calçada que me dizem: 

- Estás entregue a ti próprio, 

enquanto o dia principia a sua entrega à penumbra, e é de muito mau gosto insultar e culpar o sol como se pudesse ser ele o culpado desta latitude, ou da hora que inventámos para melhor regulação do ocidente. E, nisto, nem sequer o copo de malte abrevia a sombra numa luz de som, e mais outros rarefeitos sentidos, mesmo sendo tudo isso parábolas de uma ligeira embriaguez. 

Estou entregue a mim próprio, condenam-me os únicos sons vindos do exterior em horas. Não sei como possa resgatar-me dessa condição este interior cabotado de lombadas, madeira, paredes, papel, fotografia, ecrã. Eu a queimar tabaco, eu a queimar o fígado. A luz cada vez mais rarefeita. Que salvação terei daqui? 

Sei que quando terminar o registo que vos dou, sobrará apenas uns desmaios de claridade aqui dentro. O meu rosto feito de sorriso ao contrário. E digo o quê? Que de nada me serve a resiliência, que estou a meio de desistir, que amanhã afinal nada mais? 

Dirão os mesmos passos: 

- Dramas que podem ser resolvidos com um aceno dentro da cama 

numa gigantesca tentativa de desacreditar dezembro. Foi o solstício, e esse facto a indicar-me que já posso contar com o conforto das minúsculas sementes 

(e as majoradas, pois claro; é uma forma de dizer…) 

para algo que, após renovação do ciclo, há essa promessa de que tudo retomará aos seus lugares, apesar da ameaça do fim. 

É por essa razão que não acredito que me findo assim, entre mais escuridão que sombras, apesar dessa apetência. Na esperança que, quando o meu fim vier, há-de haver brilho pela manhã, dia longo e temperado, e o sol despedindo-se em cores quentes. Não me façam morrer no mês de dezembro. Alvíssaras para quem tal desejo me der como garantido! 

Dizem os passos na calçada: 

- Até amanhã 

nesta altura em que, enfim, já é noite instalada. Vou dormir acreditando no até e no amanhã. Façam-me sinais, quando for para despertar.




***



High flying diver, spread your wings
Flying high on a cloud
Born on the air, spiral around
So easy making circles
You never touch the ground
You see the sea, feel the sky
Don't know where you're going
You don't, you don't know the answers
To what's in my mind
Riding on the wind and turning with the tide
Light takes you up, it brings you down
Change is the things that to me
Is chained to the frost, the wind and the rain
And everyone keeps staring up
You'll be back again

Camel, 1976

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