o voyeur

foto de Aleksandr Gubel


Aquela mulher, que vivia no último e terceiro andar do prédio de fachada esverdeada em frente do prédio onde vive este homem, aparecia muitas vezes à varanda de cerca de três metros de largura (por ser o apartamento recuado, tendo varanda em toda a sua frente) e, se a distância e os olhos do homem não o enganaram, com um metro e meio, talvez pouco mais, de profundidade. Até há uns meses, pelas oito horas da manhã, surgia na sua figura em robe, cabelo longo em desalinho, segurando na mão esquerda uma enorme e fumegante chávena de cor azul muito claro que, em gestos quase rituais, levava aos lábios a beberricar o conteúdo. Vinha aquela mulher à sua varanda assim que escutava

(supôs ele)

os passos das pessoas apressadas na rua, bem como o rumor da auto-estrada mais longe, veículos em velocidades várias, consoante a pressa da jornada. Este homem, desde a sua janela, a uns trinta metros de distância e num nível mais abaixo da varanda da mulher, conseguia sentir o prazer que ela colocava na observação do mundo que se havia erguido antes do seu despertar e para além dele. No sorriso posto em cada estore levantado como se largasse bom dia aos que mais tarde iniciavam o dia. Nos acenos levados aos vizinhos que lhe eram próximos ou mais íntimos. No olhar mantido por alguns minutos em distâncias que ele apenas podia imaginar, a sentir as vibrações mundanas, quiçá o chilreio das aves mais próximas, ou uma brisa particular que inalava com todos os seus cheiros diferenciados.

Desde há duas semanas destes nossos dias que não veio mais à varanda, num esvaecimento diário que ele foi notando de dia para dia desde que o mundo se obrigou a parar, precipitado pela chuva sem tréguas. Imaginou: este mundo desperta agora só no seu interior, não vem colocar os rumores cá fora, e a mulher terá ficado desapontada, cansada do silêncio, agora que a agitação quotidiana – essa que a erguia como cicerone na sua condição de observadora dos outros – desapareceu. 

Confessou o homem, porém, que não deixou de ver a mulher, desde a sua montra, onde lhe punha os olhos curiosos há meses. No apartamento que ela habitava, na segunda de duas janelas depois da maior que supostamente seria de uma ampla sala de estar, continuou a observá-la. Nunca suspeitara em qual divisão da sua casa essa janela teria sido rasgada, não supôs sequer qualquer desenho da arquitetura do prédio em frente, para além da fachada, tão comum com outros prédios circundantes.

Também nunca reparou o quão claro e suspenso de pudor pudesse a janela ser, desprovida de cortinas, ou de um vidro baço, martelado. Então a mulher deixou de aparecer à varanda para se mostrar, pouco depois da nove da manhã e pouco antes da dez da noite, nessa janela, completamente nua, debaixo da água do chuveiro. Não é uma janela inteiriça, terá uma distância de cerca de 90 centímetros do chão da varanda, e uma altura de cerca de 70 centímetros. Provavelmente há que subir para o espaço onde o chuveiro está instalado, uma vez que só os joelhos e a parte inferior das pernas ficam escondidos, de resto, desde as coxas até à cabeça, pôde o homem constatar, na figura da mulher que se banhava duas vezes por dia, uma beleza física que o roupão não deixava perceber, quando só e apenas a observava à varanda.

Soube ontem do seu suicídio. Contudo, não sem antes ter tido a oportunidade, a semana passada, de olhar por dentro do apartamento dela a claridade que a casa recebe das vidraças que dão para a varanda, nessa ocasião tão encharcada pela chuva. Pôde perceber também como era exposta a sua figura no momento do duche. E pôde mesmo constatar, não só pelo sentido da visão, mas com todos, do deslumbrante corpo feminino do qual nunca dera conta quando escondido naquele roupão, à varanda, no antigo ritual matutino da mulher.

Que foi este homem fazer? Por que razão lhe acenou, naquela quarta-feira, ao ter percebido que aquela mulher sabia que ele a olhava? Que aconteceu nesses olhares trocados para ter resultado um convite? Agora, ela, por vontade própria, havia desaparecido para sempre da sua vista e ele, em grito abafado e temeroso, com todo o seu corpo tatuado pelo dela, como maldição, a sentir que será para sempre o seu desgosto e o seu remorso.


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