incumprimento



Terá começado aqui e naquele dia, longe e quando deixei de te encontrar, a procura de mim que temo ter irremediavelmente perdido. O que recordo, e se a memória não me atraiçoa, é do cheiro intenso a flores desse momento como nunca havia sentido antes: gladíolos, jasmins, violetas, rosas e cravos. Com o cheiro da cera misturado, a cera nos candelabros derretida, esses odores fizeram lembrar-me das tuas explicações sobre a razão da neve derreter quando em certa ocasião me percebeste desiludido porque os flocos de neve desapareciam entre os meus dedos, transformados em água. 

Desde aquele dia, em que venho recordando a última vez que te vi

(isto é, que vi a figura do teu rosto frio como os penedos do monte)

tem sido um pouco confuso aceitar a neve derretida por se assemelhar à cera liquefeita nos candelabros pesados daquela capelinha onde amigos e vizinhos depuseram o teu corpo, este também transformado em cera que – talvez, não tenho bem a certeza – se derreteu então igualmente entre os meus dedos numa água salgada teimosamente libertada pela convulsão do meu rosto, nas fontes abertas dos meus olhos.

Estou nisto, com as memórias que jaziam apenas superficialmente sob areia que desaparece sob o vento, para me convencer que foi aqui, naquele dia, que intentei procurar-me quanto a tudo o que fui, na tentativa última de me reconstruir. E vejo hoje a casa povoada pelo silêncio e a escuridão. As lascas das paredes eram como a terra sulcada pela água das chuvas, desarmando as sucessivas tentativas de encobrires as humidades da casa com as várias camadas de cal que lhes davas. 

Aos domingos, se o sol despontasse, colocavas-me um grande pincel nas mãos pequenas e dizias vais ajudar-me, arrancando-me às brincadeiras solitárias no fundo do quintal onde eu erguia bocadinhos do mundo que não conhecia e ia inventando. Éramos só nós os dois nessa tentativa de rejuvenescer a casa uma vez que os meus dois irmãos mais velhos e, porém, tão novos ainda, trabalhando já, saiam aos domingos para a vila, fazer-se à vida, desabafavas tu, a arranjar casório; e à semana partiam de casa tão cedo e regressavam já tão tarde para tudo que fui, aos poucos, deixando de lhes reconhecer qualquer papel familiar na minha vida

(eis que me recordo de nesse dia notar esses estranhos irmãos à volta da tua figura de museu de cera, com os semblantes brancos, espantadíssimos perante tantas flores como nunca viram igualmente – como podiam ver as flores se saiam era ainda noite e noite volvia a ser quando regressavam? – curiosos pelas explicações que nunca lhes deste sobre os segredos da água que lhes saia dos rostos e que vinha enfim dos flocos de neve nascidos dos céus sobre a serra e desciam a esta aldeia do princípio de tudo)

de modo que, se éramos órfãos de pai e, como tu, os meus irmãos trabalhavam para poder sustentar a casa sufocada pelas lascas das paredes, a palavra família para mim não tinha qualquer significado, nem mesmo quando era arrancado sucessivas vezes do mundo à minha escala no quintal por trás da casa e enfiado num autocarro velho que me levava à escola na vila, a velha professora falando a uma sala repleta de crianças mais ou menos da minha idade, igualmente mal vestidas, igualmente mal alimentadas, igualmente sem grandes sucessos na aprendizagem aos trambolhos inculcada

(como os meus irmãos que a escola pouco conheceram, eles espantadíssimos com o giz branco desenhando alfabetos e álgebra num quadro negro rachado e comido pela humidade),

como dizia, nem quando essa velha professora nos falava do sentido da família, do pai da mãe dos irmãos dos avós dos tios e dos primos e de como era importante o natal e a páscoa e as festas de verão nas aldeias para a família que se reunia, eu nunca compreendi essa noção, já que outras pessoas, que não eu e tu ou os meus irmãos ausentes, eram somente os vizinhos que iam perguntando

– Como vai essa saúde, ti’ Seição?

e considerei que a velha alucinava no seu quintal atrás da escola, parecido com o nosso, com um mundo por ela inventado, e talvez ela tivesse uma mãe como tu, que a arrancava das suas brincadeiras e lhe colocava nas mãos enrugadas um pincel molhado de tinta para apagar as rachas da parede da sala onde nos contava todos os segredos do giz branco que, como a neve, se esvaía entre os dedos depois de esfregado correctamente contra o quadro negro rachado e comido pela humidade, desenhando alfabetos e álgebra. 

Imaginava encantador o seu quintal lá atrás da escola, e roía-me de curiosidade para saber como seria uma velha a brincar no seu mundo inventado, sem se preocupar, como eu, dos irmãos que cedo partiam e tarde regressavam, e se havia pão todos os dias, ou carne nos dias mais importantes. 



Enfim, é tudo isto que desde então tem vindo a sufocar-me, sabes?, todas estas memórias, umas vezes tão claras, outras tão fragmentadas, que me afectam e distorcem a emoção que me trazem… Já nem sei a razão das flores e do seu cheiro intenso, se fui eu que te perguntei pela neve ou se foste tu que deste conta dos meus olhos tristíssimos; pena é que, se assim foi, só nesse dia foste capaz de olhar para mim como mãe

(os meus irmãos espantadíssimos por eu saber por que a neve se derretia, eles julgando que eu tirava essas conclusões no quintal atrás da casa onde inventava o mundo feito à minha escala de menino)

e creio que transformei esse momento, durante todos estes anos, num abraço, num afago que não me lembro de ter acontecido antes. E foi isso, também o pincel ou outra coisa qualquer que me colocavas nas mãos pequenas a dizer vais ajudar-me, que eu entendi como o beijo da falta de tudo que sentia em ti. Era tão pouco o tempo que estavas em casa que fui acreditando que quando nevava era o meu dia de sorte: tu estavas lá. Ao meu lado.

Pintar agora as paredes da casa para quê se, recordando o cheiro das flores, as lascas tomaram o teu lugar de figura de museu de cera e desapareceram todos os motivos para que eu possa recomeçar

(e recomeçar exactamente o quê)?

Afinal, a que vim hoje eu aqui? Só esqueletos desempoeirados, tirados do esconso dos armários em ruína. Não sabia que pudessem doer assim os ossos do tempo que, corrido, neste particular que a mim diz respeito, nunca concedeu esquecimento algum ou circunstância de ferida sarada.


Perante tudo isto, o incumprimento de um desejo que repetias algumas noites à lareira, na antecipação daquele dia:

– Esta casa veio das minhas mãos e do meu suor, quantas lágrimas para a conseguir… Lembrai-vos de a manter quando eu já não for terrena!

Oh, minha mãe... sei lá dos irmãos que disseste que eram meus – terão desaparecido como sonho teu e meu? De ti, tenho confusa comoção de amor, saudade, raiva e incompreensão. Da casa, apenas frustração de não me devolver ao que fui, para compreender no que me tornei. Então, venda-se. Não sou daqui e, assim sendo, sou de lugar nenhum. Nem tu. Ficarás dissolvida quando eu também deixar de ser terreno.


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