fado


A tarde mal havia começado e já a luz do dia se tinha tornado numa humidade grisalha. Volvidas seis horas, as gotas alarmadas sobre os telhados, pavimentos e estradas, vertidas pelas escuras nuvens que acabaram por antecipar o princípio da noite

(tão virgem ainda e, talvez por tal condição, tão molhada, já que novembro um amante sedutor por envolto de misteriosos nevoeiros quando o sol, desistindo e decidido em consequentes lamúrias de timidez)

obrigando as casas, dos apartamentos em prédios de vários e crescentes andares, a acenderem, quais cicerones, as luzes das suas pequenas salas, quartos, cozinhas, concentrando essa condição de aconchego para quem, da rua, e desprevenido da chuva, se aligeira de ternura para chegar ao conforto do seu lar

e eu

(perdão, não eu, mas outros por mim, embora seja eu quem escreve e lhes dá voz)

perdido da noção desse tempo decorrido, esquecido que a hora antecipada no crepúsculo que esta precipitação não se deu de se lhe perceber, estendo o grito para que não haja fim, e que o princípio tão precipitado da noite não dê razões para a solidão se plantar, a escutar e vigiar o comportamento dos que não se prestam a  

«Que destino, ou maldição

manda em nós, meu coração?

Um do outro assim perdidos

somos dois gritos calados

dois fados desencontrados

dois amantes desunidos.

 

Por ti sofro e vou morrendo

não te encontro, nem te entendo

amo e odeio sem razão!

Coração... quando te cansas

das nossas mortas esperanças;

quando paras, coração?

 

Nesta luta, esta agonia

canto e choro de alegria

sou feliz e desgraçada!

Que sina a tua, meu peito,

que nunca estás satisfeito;

que dás tudo e não tens nada.

 

A gelada solidão

que tu me dás, coração

não é vida nem é morte.

É lucidez, desatino

de ler no próprio destino

sem poder mudar-lhe a sorte.»

nesta voz que é sempre nossa, de nós impressa em palavras, murmúrio e canção. E destino. Desatinos do amor, que nos confina na totalidade. Nada menos, nada mais que isto. Chova. Vão sempre surgir outros amanhãs, sem a constância da chuva a insistir nesta conforme solidão.

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poema do fado citado da autoria de Armando Vieira Pinto, na voz de Amália

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